Dois poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista Arribação – 5.6.2019

(Fonte: https://arribacao.wordpress.com/2019/06/05/dois-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

 

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

 

***

 

Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas “A máquina de carregar nadas” (7Letras, 2017) e “Poemas em torno do chão & Primeiros poemas” (Carlini & Caniato, 2018). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Encontram-se textos seus no Brasil, na Espanha e em Portugal (Revista Cult, Escamandro, plaquete “Vozes, Versos”, Palavra Comum, Enfermaria 6, Revista Escriva [PUC-RS], Revista Magma [USP], Revista Opiniães [USP], A Bacana, Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou em periódicos ou em livros traduções de Bertolt Brecht, Erich Kästner, Ingeborg Bachmann, Johannes Bobrowski, Nelly Sachs, Paul Celan, Peter Waterhouse e outros.
http://www.matheusgumenin.com
matheusgumenin@hotmail.com

Quinta Maldita #49 – Literatura & Crise – 23.5.2019

Literatura & Crise | Quinta Maldita #49
Idealização: Demétrio Panarotto
Montagem: Marcio Fontoura
Produção: Desterro Cultural com parceria da Ruído Manifesto. Música de Joan Tower.

Com as vozes de:

1 – Adelaide Ivánova (PE) – Piriguetismo de guerrilha (Pra Maria Filipa)
2 – Tarso de Melo (SP) – Variações sobre o medo
3 – Hirondina Joshua (Moçambique) – [sem título]
4 – Fabiano Calixto (PE) – Cadáver esquisito
5 – Natasha Felix (SP) – Feliz como Lázaro
6 – Ronald Augusto (RS) – Em resposta a uma outra solicitação que lhe fizeram
7 – Cinthia Kriemler (RJ/DF) – Lixo
8 – Ismar Tirelli Neto (RJ) – [sem título]
9 – Divanize Carbonieri (SP/MT) – Bagaço
10 – Matheus Guménin Barreto (MT) – [sem título]
11 – Lívia Bertges (MG/MT) – Lama
12 – Óscar Fanheiro (Moçambique) – [sem título]
13 – Marceli Andresa Becker (RS) – [sem título]
14 – Natália Agra (AL) – Canção para W. B. Yeats
15 – Sofia Ferrés (Uruguai/SP) – [sem título]
16 – Marcelo Labes (SC) – Mare nostrum
17 – Adriane Garcia (MG) – Adoro os grandes capitalistas
18 – Duan Kissonde (RS) – [sem título]
19 – Ângela Coradini (MT) – Poema treze
20 – Gustavo Matte (SC/RS) – [sem título]
21 – Tita F. Martinuci (PR/MT) – [sem título]
22 – Bruna Mitrano (RJ) – [sem título]

Quinta Maldita #22 – Afeto & Erotismo – 15.3.2018

Afeto & Erotismo | Quinta Maldita #22
Idealização: Demétrio Panarotto
Montagem: Marcio Fontoura
Produção: Desterro Cultural com parceria da Ruído Manifesto. Música de Sofia Gubaidulina. Pintura de Mark Rothko.

Com as vozes de:

01 Micheliny Verunschk – [sem título]
02 Natalia Borges Polesso – Saliva
03 Casé Lontra Marques – Encaixar o rosto nos ossos
04 Aline Bei – Penetração
05 Matheus Guménin Barreto – Um corpo incendiado: este
06 Caio Augusto Leite – [sem título]
07 Natasha Felix – [sem título]
08 Ave Terrena Alves – [sem título]
09 Gustavo Cardoso – Copacabana
10 Joe Sales – Amor de ainda
11 Marilia Beatriz de Figueiredo Leite – [sem título]
12 Leonardo Chioda – Escreveu certa vez o fotógrafo Duane Michals
13 Luana Claro – [sem título]
14 Marcelo Labes – Inverno
15 Lilian Sais – Manual pornodidático para homens
16 Rafael Tahan – Pathos
17 Santiago Santos – Raiane
18 Rodivaldo Ribeiro – Uma dúvida
19 Tita F. Martinuci – [sem título]
20 Wuldson Marcelo – Da estrada e sobre ela
21 Simone Brantes – Pote

 

3 poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista Pixé nº3 – 31.5.2019

(Fonte: https://www.revistapixe.com.br/ )

 

Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

*

corpo: que coisa será essa
a que servirá ou a quem, computará quem
os beijos que deu e dará e quem os tons
de carmim que já viu aos domingos e quem
os cachorros que lhe lamberam os dedos e quando
e quem computará as madrugadas e o branco que fazem
e quem
os sons que gestou na garganta e não disse e quem
o amor miúdo e bom que reina entre as paredes de um apartamento e quem
dirá a esse corpo que tudo
cedo ou tarde
não vai ter existido
na garganta faminta do tempo?

*

Como escrever um poema
enquanto a fome carcome um corpo a-
inda que um só corpo ainda que como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um

 

***

 

*Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Encontram-se poemas seus no Brasil, na Espanha e em Portugal (Revista Cult, Escamandro, plaquete “Vozes, Versos”, Mallarmargens, Palavra Comum e Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.

Onde adquirir os livros

O livro HISTÓRIA NATURAL DA FEBRE (Editora Corsário-Satã, 2022) pode ser adquirido:

no site da editora Corsário-Satã com envio para todo o Brasil: corsariosata@gmail.com / (11) 95797-5414 ( https://editoracorsariosata.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/historia-natural-da-febre-matheus-gumenin-barreto/  )

capa 2D

*

O livro MESMO QUE SEJA NOITE (Editora Corsário-Satã, 2020) pode ser adquirido:

no site da editora Corsário-Satã com envio para todo o Brasil: corsariosata@gmail.com / (11) 95797-5414 ( https://editoracorsariosata.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/mesmo-que-seja-noite-matheus-gumenin-barreto/   )

na Livraria da Travessa – Rio de Janeiro: (21) 2508-6872 ( https://www.travessa.com.br/mesmo-que-seja-noite-1-ed-2020/artigo/25561728-f4b7-467a-b4a4-65db07ab6b53 )

Print - Capa - Mesmo que seja noite - Matheus

*

O livro POEMAS EM TORNO DO CHÃO & PRIMEIROS POEMAS (Editora Carlini & Caniato, 2018) pode ser adquirido:

no site da Editora Carlini & Caniato com envio para todo o Brasil e exterior: (65) 3023-5714 ( https://tantatinta.com.br/livro/poemas-em-torno-do-chao-primeiros-poemas/ )

na livraria Rua Antiga (dentro do espaço cultural Metade Cheio) – Cuiabá: (65) 3027-3896 ( https://pt-br.facebook.com/pages/category/Bookstore/Rua-Antiga-Sebo-Itinerante-386504485038009/ )

Capa - Poemas em torno do chão & Primeiros poemas - Matheus Guménin Barreto

*

.
O livro A MÁQUINA DE CARREGAR NADAS (Editora 7Letras, 2017) pode ser adquirido:

no site da Editora 7Letras com envio para todo o Brasil e exterior: (21) 2540-0076 ( https://7letras.com.br/livro/a-maquina-de-carregar-nadas/ )

na Livraria Flâneur – Porto [Portugal]: ( https://www.flaneur.pt/produto/a-maquina-de-carregar-nadas/ )

na Livraria da Travessa – Rio de Janeiro: (21) 2508-6872 ( https://www.travessa.com.br/a-maquina-de-carregar-nadas/artigo/8de83fb0-543c-4240-97c2-93e8750a3e88 )

na Livraria Baleia (Aldeia) – Porto Alegre: (51) 3084-9044 ( https://www.facebook.com/livrariabaleia/ )

na livraria Rua Antiga (dentro do espaço cultural Metade Cheio) – Cuiabá: (65) 3027-3896 ( https://pt-br.facebook.com/pages/category/Bookstore/Rua-Antiga-Sebo-Itinerante-386504485038009/ )

na Livraria Blooks – São Paulo: (11) 3259-2291 ( http://blooks.com.br/ )

na Livraria Tapera Taperá – São Paulo: (11) 3151-3797 ( http://taperatapera.com.br/ )

na Livraria Martins Fontes – São Paulo: (11) 3292-2660  ( http://www.martinsfontespaulista.com.br/maquina-de-carregar-nadas-a-560619.aspx/p )

na Patuscada – Livraria, bar & café – São Paulo: (11) 98158-3270 ( https://www.facebook.com/livrariapatuscada/ )

maquina_de_carregar_nadas_capa.jpg

3 poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto – Revista Pixé nº1 – 31.3.2019

(Fonte: https://www.revistapixe.com.br/ )

Três poemas da série “Deus in machina”

 

intuir sua inexistência
nos gestos do irmão e do inimigo
igualmente
sua inexistência intuir na sombra entre a fruteira e a parede
branca, intuir no silêncio respondido
e não
que é já tarde para haver

que é já tarde para haver,
que mãos demais bateram já no chão
que palavras demais travaram já na língua
e travarão

intuir tanto e de tantas formas
que não haver já não tem importância,
como o resto,
e a laranjeira segue ardendo, dourada.

*

‘eu sou aquele que sou’

e o chiar dos galhos, crepitar da chuva
é o que é, talvez,
se for. e o centro sempre movente
o centro em todo lugar
também o será,
se for. e o morno de mãos amorosas,
se houver, será também,
se for.

não sou aquele que sou
nem posso ser, e contemplo
extático de brasas
aquele que talvez seja,
se for.

*

vazios o túmulo de clara pedra
os trapos claros
sob o testemunho da manhã.

ruge na rocha do sepulcro
a brisa
e anuncia que nada virá
nem ninguém.

***

Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Publicou em periódicos e livros traduções de Bertolt Brecht, Paul Celan, Peter Waterhouse e Ingeborg Bachmann. Encontram-se poemas seus no Brasil, em Portugal e na Espanha, e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018 – coleção Olho d’água).

Microantologia – 10 poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista Palavra Comum / Espanha – 20.3.2019

(Fonte: http://palavracomum.com/10-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

Como escrever um poema
enquanto a fome carcome um corpo a-
inda que um só corpo ainda que como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como escrever um poema como

***

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer deste país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

***

o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

***

corpo: que coisa será essa
a que servirá ou a quem, computará quem
os beijos que deu e dará e quem os tons
de carmim que já viu aos domingos e quem
os cachorros que lhe lamberam os dedos e quando
e quem computará as madrugadas e o branco que fazem
e quem
os sons que gestou na garganta e não disse e quem
o amor miúdo e bom que reina entre as paredes de um apartamento e quem
dirá a esse corpo que tudo
cedo ou tarde
não vai ter existido
na garganta faminta do tempo?

***

arder a vida em palavras

medidas sombra por
sombra
duma mão noutra arder a vida
na geografia incerta da boca

que arde um instante e desce à terra.

arder a vida nos ecos

e nos corpos ora nacarados ora suados do
discurso que o lábio promete
nem sempre cumpre
e quando cumpre é sempre quase.

equidistante do fim e do início arder a vida

enquanto o corpo se desfaz devagar
com carinho quase
mas resoluto.

arder do verbo absoluto à procura

o verbo na sarça que se queima magnífico
e não existe.

arder a vida pruma bosta qualquer

que mal nasce já não existe ::

– arder a vida à procura dum sol pousado na mesa
dum dia de justiça entre irmãos
e descer à terra ciente – mas contente, resoluto –
de nada ter nas mãos.

***

Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

***

OLEAJE
muro branco
onde os adeuses do mar se recolhem junto à sombra,
salgados e frescos.

(27-3-2017)

***

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

***

CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

***

MANHÃ
a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
_____________fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor de Cuiabá (Brasil). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg. Publicou traduções de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Encontram-se poemas seus no Brasil e em Portugal (plaquete “Vozes, Versos”, Escamandro, Mallarmargens, Revista Germina, Enfermaria 6, Revista Escriva [PUC-RS], A Bacana e Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.
É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020).

3 poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto – Revista Pixé nº0 – 9.3.2019

(Fonte: https://www.revistapixe.com.br/ )

Quando morre o morto
isto é:
quando o que já é morte nas linhas futuras
morre no agora
e completa seu porquê

quando morre o morto
a relva de tudo engole seu baque
mudo
e de repente de repente o haver e
[o não haver
do morto
tornam-se matéria hipotética ::
alheios já à violência limpa que é existir.

*

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer deste país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

O AMADO, MORNO, À MEIA-LUZ
O amado, morno, à meia-luz
febril, que toca o amado ereto;
aflito, esquiva-se da luz
o amado, morno, à meia-luz,
febris os dois, febris e nus.
Aflitos – se são descobertos
o amado, morno, à meia-luz
febril e o seu amado ereto!

***

Matheus Guménin Barreto (1992) é um poeta e tradutor brasileiro. Nascido em Cuiabá, é doutorando da USP. Estudou também na Universität Heidelberg. Traduziu Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann, e é autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (2017, 7Letras) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (2018, Carlini & Caniato – Coleção Olho d’Água). Foi publicado no Brasil e em Portugal (Escamandro, A Bacana, plaquete do “Vozes, Versos”, Enfermaria 6, Revista Escriva e Diário de Cuiabá; entre outros). É um dos editores do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.

“Rondó pederasta” – Revista Magma (DLCV-USP) – 28.12.2018

(Fonte: http://www.revistas.usp.br/magma/article/view/154421 )

Rondó pederasta
Virilha: morna e cheirando a vin-
ho e bocas:
ângulos duros, escuros
à espreita nas moitas, mais
ângulos duros entre as qu-
inas
da carne rubra,
o apontar-se do arpão da seta da espada da cr-
uz
do pênis
e as promessas pastoris no terreno de sua carne

os veios sem barco que os navegue
a espada sem braço que a empunhe
as moitas sem lobos que as espreitem —
eu barco eu braço eu lobo, enf-
im
sagro
o corpo do hom-
em
que submete-se ao homem outro e é
por ele sub-
metido.

Cinco poemas do livro “Poemas em torno do chão & Primeiros poemas” e um inédito de Matheus Guménin Barreto – Revista Oficina Irritada – 22.12.2018

(Fonte: https://oficinairritadarevista.blogspot.com/2018/12/poemas-em-torno-do-chao-um-poema.html )

O primeiro poema abaixo é inédito em livro, os demais estão no volume recém-lançado Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018).

***

 

[SEM TÍTULO]
arder a vida em palavras

medidas sombra por
sombra
duma mão noutra arder a vida
na geografia incerta da boca

que arde um instante e desce à terra.

arder a vida nos ecos

e nos corpos ora nacarados ora suados do
discurso que o lábio promete
nem sempre cumpre
e quando cumpre é sempre quase.

equidistante do fim e do início arder a vida

enquanto o corpo se desfaz devagar
com carinho quase
mas resoluto.

arder do verbo absoluto à procura

o verbo na sarça que se queima magnífico
e não existe.

arder a vida pruma bosta qualquer

que mal nasce já não existe ::

– arder a vida à procura dum sol pousado na mesa
dum dia de justiça entre irmãos
e descer à terra ciente – mas contente, resoluto –
de nada ter nas mãos.

*

5. PALMONES, 18XX
a)
cansados talvez os seus olhos
destas palmeiras
cansados
destas paredes brancas nuas gastas
de igreja cansados talvez os seus olhos
de ruminarem sobre os
lampejos de mar e
do labor seu de olhar a Ceuta no horizonte
próxima e distante
cansados talvez tenham se cansado os olhos seus
dos adeuses do mar sobre a areia
– que volta sempre, arrependido.

27-3-2017

*

6. OLEAJE
muro branco
onde os adeuses do mar se recolhem junto à sombra,
salgados e frescos.

27-3-2017

*

CUIABÁ/CHAPADA DOS GUIMARÃES
O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento
arranca, da rocha, a areia:

de grão em grão faz escola:
a rocha, no ensinamento,
é aluna: na lição dura
de nada durar no tempo.

Os rubros montes de areia
– Chapada dos Guimarães
em torno de Cuiabá –
aprendem suas lições.

Os montes de forma fraca
desfazem-se ante um ditado
do vento: de que o que o homem
ergueu, o que ele escancara,

esconde e derruba o tempo:
que aquilo que o braço monta
o sopro derrubará:
que aquilo que o sonho encontra

e o homem faz realidade
o tempo outra vez o acha
e torna outra vez em sonho
que ninguém mais sonhará.

Paciente labor do vento,
irmão mais novo do tempo,
que esculpe Chapada grão
por grão: apesar de lento,

certeiro é no seu trabalho:
que é muito apesar de pouco,
que é grande mesmo pequeno,
que é muitos trabalhos poucos.

Os montes têm nessa escola
lição de se desfazer:
que o pouco que faz o homem,
que o muito que o homem vê

apaga-se sobre a pedra
do tempo em geometrias
secretas ao despencar:
desfaz qual desfeito é um dia

na barra vermelho-roxa
da tarde, em seu é-não-é.
Aquilo que o homem faz,
aquilo que o homem vê,

aquilo que o homem cala,
aquilo que o homem diz,
aquilo que o homem prende
aquilo que o homem quis

aprende a lição que aprende
o monte, ao se desfazer.
O monte rubro-laranja:
quando ele iria dizer

do tempo o grande segredo,
a resposta que se espera —
despenca em areia branda
pra lá do que já não é.

O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento,
de régua em mãos, instrui: tempo.

27/06/2017

*

B – O SEXO DOS DOIS HOMENS
Na fresco-gruta
(refúgio)
concha do não mar fechada à luz despudorada
dois homens maquinam o presente
no corpo um do
outro
agudo o tempo presente
agudo e branco e musgoso e

então calma e nada –

ah — ir e vir da onda do mar
onda dum mar inexistente
por isso mais mar.

dois homens maquinaram o presente
(na baía um d’outro o maquinaram)
e não sabem agora onde pô-lo,
ariscos.

lá fora no céu rumina o boi um presente outro
comum e outro
alheio à maquinação do amor.

*

[SEM TÍTULO]
Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

***

Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá) é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs, estudou também na Universidade de Heidelberg. Publicou traduções de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Encontram-se poemas seus no Brasil e em Portugal, e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018).

“Um corpo incendiado: este” – Libertinagem: Revista de Literatura e Arte eróticas – 20.12.2018

(Fonte: http://revistalibertinagem.com.br/?fbclid=IwAR2uk81vJfgWpYM3Ak1Pwi6683uj8f7Jivy_gFOUdHuComKPtT-W1pZi0qs )

Excerto f – Um corpo incendiado: este
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

*

o sexo
devir perpétuo: tempo enclausurado
o amado e seu amado inventam tempo,
corpo, febre
e o que medi-los

*

o mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro
de um trópico último com um último meridiano

os olhos nublados de algo que não se adivinha

o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.

*

pulsos frescos de amor
alegres do arrear o amor e serem
por ele arreados.

*

a cegueira do homem que de seu corpo morno
soletra o corpo morno d’outro homem
os sinais as vírgulas
discursa entre duas bocas
e recita, extático e nu, a abrasada
violenta
poesia
que o corpo maquina na carne.

*

no beijo
o que há de elástico o que há de contrito
de adivinhado
o que há de inaudito talvez ou
quase ou sempre
entre o dizer de bocas mudas?
talvez tremeluza nos céus seus
mornos
a estrela da manhã
branda e inconstante
e nela se solucione um homem
como uma noite se soluciona em dia.

*

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

***

Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá) é poeta, tradutor e doutorando em teoria da tradução (FFLCH-USP). Publicou traduções de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Em 2018 integrou o Printemps Littéraire Brésilien na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou os livros A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018).

 

Cinco poemas do livro “Poemas em torno do chão & Primeiros poemas” de Matheus Guménin Barreto – Ruído Manifesto – 7.12.2018

(Fonte: http://ruidomanifesto.org/cinco-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

Os cinco poemas abaixo fazem parte do livro Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018), que será lançado em box da editora com outros 9 livros do modernismo e do período contemporâneo mato-grossenses. O lançamento acontece no dia 10/12/2018 na Casa Barão de Melgaço (Cuiabá) às 19h30.

A carta ao final da postagem foi escrita pelo poeta catarinense Marcelo Labes em 26 de abril de 2018 e o artigo sobre o poema “Cuiabá/Chapada dos Guimarães” foi escrito pela poeta Lucinda Nogueira Persona (e originalmente publicado no Diário de Cuiabá no dia 8 de julho de 2017).

***

3. El rumorear
(e entre os muros entre os ramos entre as fontes
por detrás do espelho
-d’água
rumoreja baixinho aquele sangue
derramado
além-mar)

26-3-2017

[da seção “Poemas espanhóis”]

*

6. Oleaje
muro branco
onde os adeuses do mar se recolhem junto à sombra,
salgados e frescos.

27-3-2017

[da seção “Poemas espanhóis”]

*

Cuiabá/Chapada dos Guimarães
O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento
arranca, da rocha, a areia:

de grão em grão faz escola:
a rocha, no ensinamento,
é aluna: na lição dura
de nada durar no tempo.

Os rubros montes de areia
– Chapada dos Guimarães
em torno de Cuiabá –
aprendem suas lições.

Os montes de forma fraca
desfazem-se ante um ditado
do vento: de que o que o homem
ergueu, o que ele escancara,

esconde e derruba o tempo:
que aquilo que o braço monta
o sopro derrubará:
que aquilo que o sonho encontra

e o homem faz realidade
o tempo outra vez o acha
e torna outra vez em sonho
que ninguém mais sonhará.

Paciente labor do vento,
irmão mais novo do tempo,
que esculpe Chapada grão
por grão: apesar de lento,

certeiro é no seu trabalho:
que é muito apesar de pouco,
que é grande mesmo pequeno,
que é muitos trabalhos poucos.

Os montes têm nessa escola
lição de se desfazer:
que o pouco que faz o homem,
que o muito que o homem vê

apaga-se sobre a pedra
do tempo em geometrias
secretas ao despencar:
desfaz qual desfeito é um dia

na barra vermelho-roxa
da tarde, em seu é-não-é.
Aquilo que o homem faz,
aquilo que o homem vê,

aquilo que o homem cala,
aquilo que o homem diz,
aquilo que o homem prende
aquilo que o homem quis

aprende a lição que aprende
o monte, ao se desfazer.
O monte rubro-laranja:
quando ele iria dizer

do tempo o grande segredo,
a resposta que se espera —
despenca em areia branda
pra lá do que já não é.

O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento,
de régua em mãos, instrui: tempo.

27/06/2017

[da seção de mesmo nome]

*

d – Fora da casa: as ruas de Cuiabá  
Os cacos da luz mastigados
pelo sol
as arestas e as linhas retas e os ângulos
claros
claros como a clara do ovo claros
como a espuma dos mares claros
como a quina do último quarto onde o amor se fará, no último dia do tempo:

cuia-
bá suas forjas visíveis
onde o ferreiro o ferreiro faz suas lâminas de
luz
e as refaz, todos os dias

onde cada aresta é a não-aresta,
a pino,
e o sol come folhas das nossas mãos.

[do poema narrativo homoerótico “Cuiabá”]

*

Desassossego
b)
Dedos que aquecem-se à chama
morna da sarça dos dias,
confusos de si e da chama.
Confusos do que os chama
– que deus ‘inda os chamaria?
Nenhum. E arde o tempo em frente
e ardendo forma-se sempre
da parte de si que ardia.

[da seção “O não chão”]

*

Uma carta

Texto escrito e enviado de Florianópolis pelo poeta Marcelo Labes no dia 26 de abril de 2018.

Neno querido,

tu me colocas numa situação confortável e estranha quando me envias teus poemas. Pedi para que me contextualizasses a fim de eu saber quando e como. E a minha surpresa ao saber que esses poemas do “O não chão” são de agora. Então me explico para te falar de conforto e estranheza.

O conforto surge ao ler um poeta maior. Digo isso porque nós, poetas menores, não só não nos acostumamos à forma como nos limitamos aos conteúdos menores, de poetas menores. Por quê? Ora, certamente porque há um cuidado – e já falei disso antes – no que escrever. Um cuidado cirúrgico, quase. Um olhar minucioso sobre o poema. Uma lapidação que não nos mostra a pedra como veríamos numa vitrine, não. É um formato novo, ainda que antigo: é um formato todo teu, Matheus.

Sobre a estranheza, acho que me alongo.

Vejo isso em “O não chão” como vejo em teus primeiros. Há um conflito latente ali. Não sei se identifico o que me aparece, mas talvez seja um duelo entre uma forma antiga – ou uma recordação de formato – , e uma linguagem que comunica e não esconde nada. Se no chiaroscuro temos as sombras, onde nem tudo é visível e, o que é, muitas vezes é disforme, teus poemas não deixam um lado vazio: eles mostram, pelo contrário, luz e sombra do humano, do sujeito este, de carne e osso, com a alma confusa, como geralmente somos.

A propósito, retorno ao tema do poeta maior. Porque para além da lapidação, há outro olhar (com lupa?, com telescópio?, microscópio?, com o quê?) que nos desnuda a todos pela tua palavra. Ora, que isso se deve ao ofício de poeta. Mas assim, Matheus, assim o ofício se cumpre tão inteiramente que não chega a haver um outro lado do poema. Se nessa intenção barroca, se naquela intenção juvenil de “Primeiros poemas”, tanto faz: há ali um todo espantoso, uma completude alcançada com as palavras e, nelas, com a tua humanidade – que não é a nossa humanidade, é outra coisa, é além – que me faz parar e me diminuir diante de teus poemas.

Sinto-me contemplado. Sinto-me enxergado. Sinto-me desafiado a tratar a língua com mais respeito e destreza.

Se não dissesse ali serem essa a tua juvenília, pensaria ser os poemas de antes de ontem. E são, de certa forma, porque imagino que aí, como aqui, o tempo é um brinquedo com o qual nos divertimos.

Teus poemas são bálsamo. E se já disse isso, repito agora com mais força: teus poemas são bálsamo.

E eu, e nós, humanos sem cura, nós te precisamos.

Beijo grande.

Saudade.

Marcelo

Marcelo Labes: poeta catarinense, autor de Enclave (Editora Patuá, 2018), Trapaça (Oito e Meio, 2016), O filho da empregada (Antítese, Hemisfério Sul, 2016), Porque sim não é resposta (Antítese, Hemisfério Sul, 2015) e Falações (EdiFurb, 2008).

 

 *

 

Lições através do vento

Texto de Lucinda Nogueira Persona publicado no Diário de Cuiabá no dia 8 de julho de 2017 junto ao poema “Cuiabá/Chapada dos Guimarães”.

A paisagem nasce na luz do olhar e representa um desafio à sensibilidade. Algumas vezes (senão todas) causa tamanho fascínio ou inquietação, ao ponto de levar o espírito às mais variadas expressões, principalmente na arte, dentre as quais a poesia responde com absoluta presteza.

É o que se observa no poema “Cuiabá/Chapada dos Guimarães”, de Matheus Guménin Barreto, sendo posto a serviço do leitor. No referido poema, o jovem autor trabalha com comarcas imanentes da existência: a passagem do tempo, os sonhos, as transformações, a morte. Sua visão particular recai sobre um patrimônio natural, um clássico comovente da geomorfologia mato-grossense, aquele que emoldurando o horizonte quando se olha de Cuiabá, traz a ideia de um lugar que não se pode deixar de conhecer.

Trata-se da extensa área de planalto, o relevo da Chapada dos Guimarães, com grandes encostas e escarpas de arenito vermelho, soerguidas a 600 ou 800 metros de altitude. Entretanto, isso ecoa como informação de uma aula um tanto comedida, padronizada. E esta não é a perspectiva do poeta, já nos versos iniciais: “O vento professa à rocha / suas aulas do desfazer-se / de tudo no tempo. O vento / arranca, da rocha, a areia”.

Matheus Guménin nos fala em termos de uma lição mais extensa, prática e fabulosa, na qual o professor é alguém que não para nunca, em milhares de anos de aulas diárias; a aluna é empedernida, conformada em seu torpor mineral e a sala de aula, nada convencional, está a céu aberto, sobre um chão cujo evento geológico mais recente (e que lhe deu a face atual) remonta a 15 milhões de anos. Desse chão emergem rochas varridas pelo vento. E o vento, de onde quer que venha, intenso ou não, dia a dia faz seu trabalho na pedra, que se perde como areia. Assim, a paisagem surge com força impositiva na argamassa do poema, onde as partes de um cenário colossal são evocadas para a tradução de uma experiência vinculada aos efeitos do tempo sobre as coisas e os seres.

Vários elementos podem ser apontados nas considerações de um dado poema, mas aqui, na sólida construção de 15 estrofes de Matheus Guménin, o grato parâmetro é a fração da natureza absorvida pelo olhar. Construindo o poema a partir da desconstrução das rochas pelo vento, o poeta revela um pouco daquilo que pensa, sente e acredita ser o mundo, a vida e a linguagem. Emoção e razão se contrabalançam em suas mãos e a forma adotada faz vislumbrar certa filiação ao universo cabralino. Ao longo do poema, o autor elege e agrega alguns signos (escola, lição, pedra) que nos remetem de algum modo ao “A educação pela pedra” de João Cabral de Melo Neto.

Na elaboração de Matheus Guménin, o sujeito poético se posiciona fora dos eventos que descreve, mas não deixa de estar diante do mundo, diante da vida e de si mesmo, como vítima da experiência. Uma experiência repassada para todos aqueles cujo apetite pelas transcendências seja inesgotável.

Lucinda Nogueira Persona: poeta, ficcionista, cronista, ocupa a cadeira nº 4 da Academia Mato-grossense de Letras. Graduada em Biologia (UFMT), Mestre em Histologia e Embriologia (UFRJ), com estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora aposentada (UFMT / UNIC). Livros publicados (Poesia): Por imenso gosto (Massao Ohno, 1995), Ser cotidiano (7Letras, 1998), Sopa Escaldante (7Letras, 2001), Leito de Acaso (7Letras, 2004), Tempo comum (7Letras, 2009), Entre uma noite e outra (Entrelinhas, 2014).

Quatro poemas do livro “A máquina de carregar nadas” de Matheus Guménin Barreto – Revista Primata – 22.11.2018

(Fonte: http://www.poesiaprimata.com/matheus-gumenin-barreto/matheus-gumenin-barreto-a-maquina-de-carregar-nadas-2017/ )

 

Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá) é poeta, tradutor e doutorando em teoria da tradução (FFLCH-USP). Publicou traduções de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Em 2018 integrou o Printemps Littéraire Brésilien na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou os livros A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018).

Os poemas a seguir foram selecionados do livro A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017).

 

*

 

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

 

 

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

 

 

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

 

a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

 

b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

 

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

 

 

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

“Dez poemas de Matheus Guménin Barreto” – Revista Germina – 22.9.2018

(Fonte: http://www.germinaliteratura.com.br/2018/matheus_gumenin_barreto.htm )

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

UMA ARQUITETURA DA CONCHA
“Para aquele que deu a concha”

1.
Que esta concha entre os dedos recolha
e decante em silêncios a voz
agitada em trovões – mar o crânio –,
que a decante e que a anule depois.

2.
Que recolha entre os vórtices secos
todo o eco dos mares confusos,
que o recolha e decante em silêncios
e apascente o traçado dos fusos.

3.
Que esta concha entre os dedos anule
o que dentro de alguém é loucura.
Que ela guarde, meu Deus, da loucura,
que é o que acha quem muito procura.

4.
Que estas conchas recolham do fundo
já sem fundo das curvas do mar
o olhar tão cansado do homem

– e o devolvam depois, pra guiar.

*

MANHÃ

a –

Notícias da manhã
informam que o tempo, de
fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –

O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –

A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)

e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

POEMA AMARELO

a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

*

POEMA EXTREMO

Pega na mão a pedra
pega na mão a cadeira
pega na mão o pão
mesa escada copo d’água
pega
puxa pro lado
e descobre ali

a poesia.

*

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis

.

e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

*

O LÁPIS DESCANSADO

O lápis a descansar
no colo da mesa branca.
Que arquiteturas, que riscos,
que abismos, que céu se tranca

ao longo do lápis longo
parado, imóvel, preto?
O anúncio de qualquer coisa
entre a mente e o peito.

Que coisas já guarda o lápis?
Guarda o que vem-lhe através?
Só guarda o suave das mãos,
ou o áspero dos pés?

O pé guarda acaso as linhas
das geografias e mapas?
Guarda. E, em as guardando todas:
o que és, de ti não escapa.

Sabe o que o lápis encerra
em si, na madeira morta?
Sabe, e mais sabe o lápis
aquilo que o homem ignora.

O que é que o lápis contém
do que ainda nem foi feito?
O anúncio de qualquer coisa
entre a mente e o peito.

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

“Sete poemas de Matheus Guménin Barreto” – Revista A Bacana / Portugal – 17.9.2018

(Fonte: http://www.abacana.com/oficial/sete-poemas-de-matheus-gumenin-barreto )

 

Primeiro

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

*

o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

*

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

*

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

mãos que levantaram-se e caíram
no fluir inadiável do tempo
e dia por dia ano por ano escavaram o tempo
até aqui chegarem
a estas minhas mãos morenas sob este céu transparente
sobre este teclado

mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas

o trabalho comum que é o tempo
esta conta de vidro
mão por mão gesto por gesto
feito e abandonado como as ondas consecutivas na praia
como o fio que se tece só em parte
tempo

– minhas mãos aquelas também
sob estas.

*

Canto de dissolução

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

“Dez poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista InComunidade / Portugal – 5.2018

(Fonte: http://www.incomunidade.com/v68/art_bl.php?art=192 )

 

POESIA

Ou fruto apenas entre os dentes
prestes prestes prestes a romper-se.

*

POEMA AMARELO

a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

*

EQUAÇÕES MATEMÁTICAS

1)
na curva, na nuance encontrei Deus
no limpo da linha reta o perdi

2)
quando se escuta o marulho da noite
e as coisas ganham contorno insuspeito
a geometria do silêncio aflora
e a vida vale

3)
o silêncio anterior
ao construto da fala no lábio

4)
não diz
se sabe que o dito não condiz
com o que se queria dito
e,
dito,
é outro dito no ouvido que o apascenta.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu
cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes
desesperados, 2007.

a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis

.

e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

*

MANHÃ

a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

MISSA DE 7º DIA

A cama que criam absoluta
porque carregou ali quem morria
e, morto, tomou posse
[do que
[a cama é

– essa cama foi batida
[ao sol,
[refrescada, posta
[ao craquelado
[da luz
[de algum quintal

e perdeu seu morto
como quem perde um tostão.

*

PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”

para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.

*

PENSAR QUE DORMEM TODOS

pensar pensar
pensar que todos deitam por baixo
da sombra do sono,
que dormem todos pensar que
o assassino o belo o tímido o
sagaz o corrupto o
miserável o tranquilo
dormem dormem deitam por baixo da
rede do sono
e dormem

pensar
nos seus rostos à meia-luz
entre os panos e o tear de silêncios
da noite
pensar
nessa estranha escura sem-querer
irmandade
entre os ——————–

pensar nos seus rostos
por baixo da sombra do sono
o peito respirando
a boca meio aberta
à meia-luz

pensar que dormem todos
irmãos

“Como escreve Matheus Guménin Barreto” – 9.7.2018

(Fonte: https://comoeuescrevo.com/matheus-gumenin-barreto/ )

*entrevista feita por José Nunes

 

 

Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor, autor do livro A máquina de carregar nadas.

 

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Para a escrita de poesia não tenho rotina.

Quanto ao resto, como a escrita de meu doutorado não exige horários fixos e como as aulas de alemão que dou são normalmente à tarde e à noite, não preciso acordar muito cedo – apesar de também não acordar absurdamente tarde (a não ser em dias excepcionais).

Tomo café ouvindo música. As minhas grandes paixões (muito maiores do que minha paixão por literatura) são música instrumental e ópera – apesar de, na verdade, antipatizar com boa parte das outras pessoas que também ouvem isso e que às vezes são bem esnobes. As pessoas têm um fetiche pela música “clássica” que não faz muito sentido – é só um tipo de música. Não exige (ou não deveria exigir) roupa especial, pose especial, carão especial. É só um tipo de música. De modo geral, por exemplo, acho os textos de ópera bem ruins, a música é o que salva. De qualquer forma, em 90% ou 95% do tempo que passo em casa escrevendo a tese, traduzindo, etc; é isso o que eu ouço. Nas últimas semanas as que mais ouvi de manhã foram a quarta de Brahms (com Carlos Kleiber) e o CD “The art of the prima donna” da Joan Sutherland (que começa com a maravilhosa “The soldier tir’d of war’s alarms”!). Às vezes, a quinta de Shostakovich (com Mravinsky – talvez Sanderling ou Rostropovich). Acho que me divirto escolhendo quase tanto quanto ouvindo.

O resto do dia (quando ou enquanto não preciso sair de casa) passo fazendo minhas obrigações enquanto ouço essas gravações. Tento sair o mínimo possível, não gosto muito de sair de casa. Quase só saio para ir ao mercado e dar aulas.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Acho que o meu melhor horário para a escrita é o da tarde. Não tenho um ritual de preparação para a escrita porque eu raramente decido escrever. Se escrevi três ou quatro poemas na vida por ter decidido escrevê-los foi muito. O ato da escrita não está sob meu controle, então tento simplesmente ter as ferramentas sempre afiadas: a percepção, a atenção, o cuidado com esse bicho arisco que é a palavra. Faço isso lendo bastante (acho que desde os 14 ou 15 anos não tenho espaços vazios entre um livro e outro – quando termino um livro já tenho o seguinte à mão) e conversando com ou ouvindo a conversa de outras pessoas (gosto muito de falar ao telefone [para horror dos meus amigos] e de prestar atenção às conversas alheias quando saio de casa). Leio pouquíssima teoria e muita ficção.

Quando as ferramentas estão afiadas, fica mais fácil escrever caso o impulso venha (não sei de onde ou para onde). Se estou fora de casa escrevo numa caderneta que carrego sempre, se estou em casa escrevo no notepad, já que o Word pode alterar as palavras digitadas sem que notemos. Não tenho religião, então encaro esse impulso como algo simplesmente biológico.

Devo escrever cinco ou seis poemas por mês.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Nem todos os dias, nem em períodos concentrados. Apesar de às vezes acontecer de eu escrever dois ou três poemas em um dia, o normal é que eu escreva apenas cinco ou seis por mês.

Como não dependo financeiramente da minha escrita, não coloco metas ou prazos. Já cheguei a ficar onze meses sem escrever (depois de terminar A máquina de carregar nadas) – imaginava até que não fosse escrever mais, o que não seria nenhum desastre. Acho que eu veria o fim da escrita, se ele viesse, como algo natural. Nada é fixo. O pianista canadense Glenn Gould dizia que não tinha nenhum amor especial pelo piano – simplesmente calhava de ele conseguir criar arte a partir daquele bloco de madeira. Digo o mesmo em relação à poesia: calhou de eu conseguir criar arte a partir desse corpo esquivo que é a língua, e não a partir do cinema, ou da natação ou do que seja.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Normalmente os quatro ou cinco primeiros poemas de um livro vêm sem plano, sem direção. A partir da leitura desses primeiros poemas eu começo a delinear um projeto de livro que, pode-se dizer, impõe-se a mim mais do que é forçado por mim. Curiosamente esses primeiros são os que eu normalmente jogo fora depois – quase sempre eles são mais fracos do que os seguintes.

A partir desse projeto que delineio (ou que o poema delineia em mim), os poemas seguintes já vêm de modo mais direcionado, de um jeito mais alinhado às noções que tirei dos primeiros (ainda que seja para contradizê-los). É uma relação estranha. Se não soasse muito mirabolante eu diria que os próprios poemas ditam o livro ao qual pertencerão (mas aí me lembro que, se os poemas saem de mim, são parte do que sou, então todo traço espiritual se perde e tudo fica certo – no final das contas eu dito algo a mim por vias complicadas, e tudo se resolve assim).

Da mesma forma, em algum momento os poemas escritos começam a se diferenciar muito dos anteriores. Nessa hora sei que acabei um livro. Então salvo os poemas na ordem em que foram escritos e fico seis meses exatos sem lê-los (chego a marcar em uma agenda). Depois desse tempo eu começo a ler o livro e a cortar os poemas que me parecem fracos. Não tenho muita pena dos poemas – se achasse que preciso cortar todos, eu cortaria. A máquina de carregar nadas, por exemplo, deve ter só 15% ou 20% dos poemas que escrevi naquele período.

Enquanto releio e corto poemas, já vou criando uma estrutura para o livro (de modo geral, ela já fica clara assim que começo a leitura, como se ela, sem que eu percebesse, tivesse se feito durante o período de escrita [leia-se: como se eu tivesse mandado a mim mesmo uma mensagem oculta, um bilhete na garrafa]).

De modo geral, crio um tipo de narrativa na estrutura de meus livros – não separo os poemas apenas por temas nem por período de escrita. Depois da releitura, dos cortes e da estruturação, guardo o livro por mais algum tempo (essa parte é menos fixa: às vezes um mês, às vezes dois). Depois leio tudo mais uma vez e corto mais um pouco.

E aí o livro está pronto.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Não me importo com as travas da escrita ou com a procrastinação, já que não dependo financeiramente de meus poemas. Pelo mesmo motivo, não tenho ansiedade de trabalhar em projetos longos. Acho que esses desvios também são importantes, talvez tanto quanto a escrita contínua.

Quanto às expectativas alheias, acho que elas também não são uma questão para mim. Depois das brincadeiras bestas de adolescência, eu acho que me tornei muito exigente comigo mesmo, exigente de um jeito maníaco, até. Por isso digo que A máquina de carregar nadas é meu primeiro livro – porque é o primeiro que me pareceu ter algum valor. Eu realmente seria capaz de cortar todos os poemas de um livro se eu não gostasse deles. Acho que o importante é que não faço questão de publicar livro nenhum, não faço questão de ser “escritor”, de ser “poeta”, tanto faz isso; se publico é porque gostei do resultado. Então se os poemas passam pelo processo que descrevi na resposta anterior (e A máquina de carregar nadas foi o primeiro a passar), e eu fico satisfeito com eles, já não me importo muito se as outras pessoas vão odiar ou adorar aquilo. É claro que prefiro que meus poemas causem sempre uma experiência estética forte nos leitores, mas essa infalibilidade não existe. Então se eu gosto do resultado eu já me sinto satisfeito, isso já me basta. Se as outras pessoas vão gostar ou não já importa pouco.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Como comentei anteriormente, minhas revisões são quase maníacas. Raramente mostro poemas recentes, mas acontece sim.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Tanto faz: escrevo numa caderneta se estou fora de casa, e no computador (no programa notepad) se estou em casa. Acho que a tecnologia tem um papel mais importante depois da escrita: a internet liga autores do país inteiro (e não só do país) de um modo que antigamente era inviável. É claro que há limites e falhas, já que as estruturas sociais acompanham e moldam as relações interpessoais tanto na internet quanto fora dela. Mesmo assim, acho que a situação seria (era) ainda pior sem a internet, principalmente para os autores de grupos sociais minoritários.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Realmente não sei de onde vêm ou para onde vão minhas ideias. Do e para o corpo, talvez, já que não gosto de explicações “celestes”. Os hábitos eu comentei em respostas anteriores.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros poemas?

Aprendi a cortar e a não ter pena do texto. A limpar o texto, talvez (o que claramente não se aplica aos que não são poemas, vide as respostas erráticas que dei no início desta entrevista).

Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros poemas eu diria a mim mesmo: corte, corte, corte, corte, corte.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Eu sempre começo o projeto que gostaria de fazer (se vou terminá-lo ou não, aí já é outra história). Agora tenho dois livros prontos de poemas (um deles já na editora – ele se chama Poemas em torno do chão & Primeiros poemas e deve sair em Mato Grosso ainda em 2018 pela editora Carlini & Caniato), um escrito (mas que ainda não passou os seis meses guardado) e outros dois em processo de escrita. Esses cinco livros inéditos e o já publicado A máquina de carregar nadas são, por enquanto, aquilo que consigo colocar sob a expressão (um pouco pomposa demais, esnobe demais) “minha obra”.

O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é sempre o livro que eu tento escrever no momento.

“Dois fragmentos de um poema” – Diário de Cuiabá – 7.7.2018

(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=516569 )

 

Dois fragmentos do poema longo (ainda em processo) intitulado “Cuiabá”: os fragmentos são “b – O sexo dos dois homens” & “c – Depois do sexo”.
Ambos estarão no livro Poemas em torno do chão (2018, Editora Carlini & Caniato, no prelo).

*

Na fresco-gruta
—————–(((refúgio)
concha do não mar fechada à luz despudorada
dois homens maquinam o presente
——————–no corpo um do
————————–outro
agudo o tempo presente
agudo e branco e musgoso e

então calma e nada –

 

 

 

ah – – – ir e vir da onda do mar
onda dum mar inexistente
por isso mais mar.

dois homens maquinaram o presente
(na baía um d’outro o maquinaram)
e não sabem agora onde pô-lo,
ariscos.

lá fora no céu rumina o boi um presente outro
comum e outro
alheio à maquinação do amor.

|
|
|

 

O que o amor
fermentou
o que o amor fermentou em peitos
debaixo da sombra fresca de umas casas
refúgio do boi-sol
– do boi-sol paciente e implacável
como no primeiro dia:

(que houve)

: o que o amor fermentou no peito dos homens
essa espuma mar nenhum já espirrou
mar nenhum
essa espuma que o amor fermentou no peito dos homens

mas envergonhados
mas envergonhados limpam eles a prenda dada
vestem seus panos
como se nada houvera, falam
e pisam nos domínios do sol
onde a sombra que viveram e foram
a deliciosa sombra

é engolida em geometrias de luz.

 

“Um corpo incendiado: este” – Revista Escamandro – 12.3.2018

(Fonte: https://escamandro.wordpress.com/2018/03/12/matheus-gumenin-barreto/ )

 

o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado                                                                f – Um corpo incendiado: este
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

*

o sexo
devir perpétuo: tempo enclausurado
o amado e seu amado inventam o tempo,
o corpo e a febre
e o que medi-los

*

o mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro
de um trópico último com um último meridiano

os olhos nublados de algo que não se adivinha

o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.

*

pulsos frescos de amor
alegres do arrear o amor e serem
por ele arreados.

*

a cegueira do homem que de seu corpo morno
soletra o corpo morno d’outro homem
os sinais as vírgulas
discursa entre duas bocas
e recita, extático e nu, a abrasada
violenta
poesia
que o corpo maquina na carne.

*

no beijo
o que há de elástico o que há de contrito
de adivinhado
o que há de inaudito talvez ou
quase ou sempre
entre o dizer de bocas mudas?
talvez tremeluza nos céus seus
mornos
a estrela da manhã
branda e inconstante
e nela se solucione um homem
como uma noite se soluciona em dia.

*

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

10 poemas de ‘A máquina de carregar nadas” – Musa Rara – 31.1.2018

(Fonte: http://www.musarara.com.br/o-dorso-arrebentado-de-sol )

 

 

PRIMEIRO
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

MANHÃ
a –

Notícias da manhã
informam que o tempo, de
……………………………fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

 

b –

O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

 

c –

A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

CANTO APAZIGUADO
O que sobra das mãos são as sombras de gestos
que, já feitos, nos jazem nas mãos sepultados.

O que sobra de olhares: o breve relance
que, de breve, se perde entre o feito e o lembrado.

O que resta de risos são luzes de dentes
entrevistos por entre a cortina do lábio.

O que resta da vida é a vida que fica
e ficando é que parte ao eterno adiado.

*


“Dedicado a Wlademir Dias-Pino”

e surpreender-se
de
falar

se a gar-
ganta
já se
intui
inútil

quem quem quem
Deus
quem tem coragem de
de abrir
a boca
para ouvir outra coisa que o silêncio
para ouvir coisa que
o silêncio diz
……………………………………….[melhor

quem tem coragem
de
falar

sabendo sabendo
que a fala morre
antes de
passar
do porto
da língua

quem pode quem se lança a
quem tem coragem
de
falar

sabendo que a fala
resvala
e cai na quina do quarto
sem som

quem quem quem
quem
tem coragem de falar
e de ouvir o que
diz

quem então tem coragem
de
falar
quando vê, sabe, escuta
pressente
que o que se sente
não há onde se assente
no ouvido do outro

quem tem
coragem
de
falar

quando a fala
sabe
que sua única voz
verdadeira
é quando cala

*

POEMA AMARELO
a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO
“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

 

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

POEMA EXTREMO
Pega na mão a pedra
pega na mão a cadeira
pega na mão o pão
mesa escada copo d’água
pega
puxa pro lado
…………………..e descobre ali

a poesia.

*

INÚTIL
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
………………..[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
………………………[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

.

[Todos os poemas acima são do livro A máquina de carregar nadas.]

 

Resenha de “A máquina de carregar nadas” – Lorenzo Falcão – 25.2.2018

*por Lorenzo Falcão.

(Fonte: http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/conteudo.php?sid=311&cid=10531 )

25 de fevereiro de 2018

 

Quando leio ou assisto ficção tem um troço que me conquista. Se o autor do livro ou o diretor do filme me deixam assim meio à deriva, sinto que estou no caminho certo para gostar daquilo que experimento. (Claro que… porra-louquices à parte). É um pouco como se eu não entender, devo gostar. Mas não estou aqui pra falar disso.

Meu alvo é a poesia. Especificamente a do jovem cuiabano Matheus Guménin Barreto, nascido em 1992. Recebi seu livro “a máquina de carregar nadas” (7 letras) já tem um tempinho e precisava resenhar a obra. Já desconfiava que isso iria acontecer, mesmo sem conhecer bem o poeta.

O autor tem ou vai fazer 26 anos e, através da sua diversidade poética que ando experimentando, confirmo algo que sempre defendi. A erudição nunca é demais para um artista das letras. E nem para os criadores das outras artes. Só é necessário que eles não fiquem apenas trancafiados na seara acadêmica. O que é preciso e fundamental é não empoleirar-se na erudição, mas sim, descobrir um jeito de compartilhá-la com simplicidade. Ou não.

Correr trecho pelos sons e ruídos urbanos, brindar com a boemia intelectual, chafurdar-se pelo cadinho da dor da inquietação, enfim, são coisas que têm serventia para temperar a erudição. Matheus já mostra o domínio para estacionar palavras (poesia). Milita nos campos da tradução da língua germânica (uau); e essa coisarada toda reverbera na sua “máquina…”.

 

mat

 

Dizer que esse livro/máquina nada carrega e assim nominá-lo, acredito, faz parte de uma espécie de dessacralização da poesia. Ora, pois… Para quê dar tratamento sagrado ao verso, se vivenciamos uma contemporaneidade, na qual, aquilo que deveria ser a essência do sacrossanto – a religião, se torna território gerador de intolerâncias, quando não, de ódio. E depois, certamente, sacralizar, tem a ver com cercear a liberdade (que merda).

Comecei a ler seu livro bastante aleatoriamente e fui percebendo que ele pratica o calvário do bom poeta. Apropria-se dos mais variados temas e os explora com sagacidade e coerência, embora, nada contra a incoerência, de minha parte. Para obter o que há de melhor em sua poesia, não requer erudição ao leitor. Mas, se assim o for, mais e melhores resultados os versos de Guménin vão provocar sobre as retinas, por mais fatigadas que elas sejam.

Após ter dado conta de praticamente todos os poemas (seria melhor dizer páginas, talvez) dessa “máquina…” que finge carregar nadas, finalmente, dei uma “orelhada”. Li o que escreveu sobre a obra o Bruno Rosa e… pasmei. Acho que deve me faltar alguma experiência acadêmica, talvez, a tal da literatura comparada. Bruno associa o fazer poético de Barreto, em diferentes etapas, com Drummond, Cabral, Gullar. Não duvido que certo esteja o autor da orelha.

Mas, me veio à lembrança, um comentário do velho Ricardo Dicke, a respeito do meu livro de contos, “Motel Sorriso”. Disse ele que percebeu em meus contos semelhanças a Machado, Joyce e até Guimarães Rosa. Quando ouvi isso fiquei felicíssimo, porém, ele fez o que devia: cortou o meu barato: “Não, Lorenzo… você deve procurar o seu próprio caminho e encontrar seu estilo”.

 

mat

 

O conselho do Dicke, serve, pois, para o Matheus. Não que ele esteja na beira desses autores citados na orelha, e já confessei que não percebi isso. É importante que o jovem poeta cuiabano reflita sobre tais possibilidades e aposte na sua liberdade criativa, que ele seja ousado e desbunde, que ele se provoque nesse sentido. Estou, agorinha mesmo, a duvidar que ele não vá além numa próxima publicação. Algo que venha a “fechar” com a cara de todos nós, poetas cuiabanos, que precisamos também dessa provocação.

Matheus, acredito, pela pouca idade (nasceu em 1992), e também pela qualidade da sua poesia, me parece uma das melhores novidades na literatura produzida por um mato-grossense, seja de nascença ou por adoção, neste ainda começo de século.

Paris

E pouco antes de fechar este texto, eis que descubro em meu mail, a informação de que ele está arrumando as malas rumo a Paris onde, a partir de 14 de março, participa do evento Printemps Littéraire Brésilien (Primavera Literária Brasileira) organizado pela Universidade Sorbonne e levado à França, à Bélgica, à Alemanha, a Luxemburgo e aos Estudos Unidos.

O poeta cuiabano compõe um seleto grupo de escritores ao lado de nomes como Adriana Calcanhotto, Adelaide Ivánova, Julián Fuks, Aline Bei, Caio Augusto Leite, Carola Saavedra, Natalia Borges Polesso, entre outros.

 

mat

 

 

 

O poema na voz do poeta – Matheus Guménin Barreto – Literatura & Fechadura – 4.3.2018

(Fonte: http://www.literaturaefechadura.com.br/2018/03/04/o-poema-na-voz-do-poeta-matheus-gumenin-barreto/ )

Vídeo no link acima.

 

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

Um poema rompe o branco – Caio Augusto Leite – 1.10.2017

*por Caio Augusto Leite

(Fonte: http://www.mallarmargens.com/2018/02/caio-augusto-leite-resenha-um-poema-de.html)

1 de outubro de 2017, São Paulo

Em dado momento de seu Água viva, Clarice Lispector escreve “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”.  A temática, obviamente, não é nova, Mallarmé já radicalizara ao usar a página em branco, esgotando – momentaneamente – a expressão. E falar de Mallarmé aqui é plenamente justificável ao lembrarmos que o poema em questão surge, no livro, depois de uma sequência de páginas também em branco.

Que poema, agora se perguntam os leitores flagrando uma falha nessa tentativa de crítica. É que o próprio texto permite que o crítico jogue com a expressão, usando das mesmas armas para tentar dar conta do que o poema anuncia como eterna insuficiência. É que nunca é possível falar da coisa sem ser abrupto, pois é também assim – abruptamente – que começa o poema “: “e surpreender-se/de/falar”. O uso da conjunção aditiva “e” em letra minúscula promove uma sensação de estranhamento, como se o discurso já estivesse em andamento. Ao olharmos para o livro, veremos que este “e” se conecta com o branco da página ao lado, como se a fala antes em potência (adiada pelas páginas vazias) quebrasse de repente o silêncio insuportável no qual o poeta se instalara.

E o poeta fala, mesmo sabendo que “a gar-/ganta/já se/ intui/ inútil”. E essa fala é ao mesmo tempo voz e silêncio contido, pois através do corpo da palavra que diz é que o poeta também a sufoca ao cortar, simbolicamente, a própria garganta ao meio “gar-/ganta”.

Só agora entra a tópica clariciana apontada no início: “quem quem quem/ Deus/ quem tem coragem de/ de abrir/ a boca/ para ouvir outra coisa que o silêncio/ para ouvir coisa que/ o silêncio diz/ melhor”.  Aqui – e nas seguintes estrofes que contêm a palavra “quem” – instaura-se uma ambiguidade, uma vez que se usa a estrutura interrogativa sem no entanto empregar o ponto de interrogação, tornando essas frases ao mesmo tempo perguntas (intuitivamente) e afirmações (textualmente). A frase pergunta “quem tem coragem[?]” e a frase a si mesma se responde “quem tem coragem” retomando outra passagem de Lispector (de A paixão segundo G.H.): “a explicação de um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És”. Ou ainda biblicamente: “quem, Deus?” em “Quem? Deus” – “Eu sou o que sou” responde o Criador a Moisés, não constituindo um pleonasmo e sim uma transformação do verbo “ser” em ação, sendo Deus aquele que continuamente é. O poema é aquele que continuamente permanece sendo o que é: ao mesmo tempo enigma e solução.

E quem tem coragem é este mesmo que pergunta, o próprio poema que rompeu o branco e que  – mesmo sabendo de sua deficiência – insiste em dizer. Não dizendo como uma pessoa fala com outra, pois o poema sabe que o discurso “não há onde se assente/ no ouvido do outro” e por saber disso é que a poesia – enquanto função da linguagem – não almeja dizer algo, mas ser algo. Mas até este “ser” é utópico: “a fala morre/ antes de/ passar/ do porto/ da língua”. Logo, até o poema, que é uma construção artificial, naufraga na busca de ser objeto puro, pois mesmo essa leitura que faço é uma variação daquele sentido íntimo que perpassou a ideia do poeta antes de ele escrevê-la. Palavra escrita, palavra perdida.

Pois é sina da palavra exaurir-se. Esta que é, talvez, a mais humana das invenções, é apenas um traço curto na linha do tempo da existência do Universo. Há muito “antes” sem palavras e muito “depois” que será sem elas. Por isso cada discurso – e mais ainda o artístico, que tem consciência de si – é a encenação de uma quase-tragédia; nesse sentido um poema faria o papel de protagonista e coro, pois avisa acerca do fim de si mesmo. Quase-tragédia, pois ainda há palavras, como esse poema, como esta análise, como o bom-dia que daremos amanhã (daremos?) ao vizinho, que têm força para perfurar o silêncio. Mas o poema não se esquece de que “sua única voz/ verdadeira/ é quando cala”. O poema termina e uma página em branco se derrama até que a viremos e, aliviados, encontramos outras palavras para nos salvar do nada.

Importante lembrar, também, que é o homem, como diz o título desse livro de Matheus Guménin Barreto, uma “máquina de carregar nadas” – e que por mais que usemos palavras para enfeitá-los, escondê-los, eles (os nadas) permanecem em nós mesmo quando já perdemos tudo, inclusive as palavras.

*

O poema de Matheus Guménin Barreto (BARRETO, 2017, p. 83-85):

 

Dedicado a Wlademir Dias-Pinto

e surpreender-se
de
falar

se a gar-
ganta
já se
intui
inútil

quem quem quem
Deus
quem tem coragem de
de abrir
a boca
para ouvir outra coisa que o silêncio
para ouvir coisa que
o silêncio diz
[melhor

quem tem coragem
de
falar
sabendo sabendo
que a fala morre
antes de
passar
do porto
da língua

quem pode quem se lança a
quem tem coragem
de
falar

sabendo que a fala
resvala
e cai na quina do quarto
sem som

quem quem quem
quem
tem coragem de falar
e de ouvir o que
diz

quem então tem coragem
de
falar
quando vê, sabe, escuta
pressente
que o que se sente
não há onde se assente
no ouvido do outro

quem tem
coragem
de
falar

quando a fala
sabe
que sua única voz
verdadeira
é quando cala

“Um livro que se despe diante do leitor” – Entrevista ao jornal A Gazeta – 28.1.2018

*por Ana Flávia Corrêa
(Fonte: http://www.gazetadigital.com.br/edicao/materia/numero/9458 )

28 de janeiro de 2018

Escreve, reescreve, corta, apaga, costura, emenda. É assim o processo de criação do poeta cuiabano Matheus Guménin Barreto, 25. Atualmente ele mora em São Paulo e faz mestrado na Universidade de São Paulo (USP), na sua área de formação – letras. No ano passado, ele lançou seu quarto livro, o “A Máquina de Carregar Nadas”, que considera ser o primeiro de sua carreira.

“Eu escrevi três livros antes, mas eu não acho que eles sejam bons. Para mim é como se eles fossem exercícios. Olhando os outros livros eu não vejo nada vergonhoso, nada de horrível, mas também não vejo nada de mais”, explica.

Em entrevista ao Zine, ele contou sobre sua trajetória na literatura, suas vivências e experiências em São Paulo. Confira os melhores trechos:

Quando você começou a escrever?

Matheus: Primeiro eu comecei a ler muito. Com uns oito anos eu já lia bastante essas séries de aventura, de suspense. Eu basicamente lia a biblioteca da minha escola inteira. Escrever eu comecei um pouco depois, como brincadeira. Eu escrevia uma história e meus amigos continuavam e a gente ficava montando em conjunto. Cada um fazia um personagem, um parágrafo e no fim formávamos uma história. Hoje eu vejo que eles [meus textos] eram muito ruins, mas foi um exercício para eu pegar o gosto pela escrita. Aos 14 eu comecei a escrever poemas.

Seus pais sabiam e te apoiavam?

Matheus: Eu era muito fechado nesse sentido, então eu não falava pros meus pais. Meus poemas eu mostrava para a minha professora do ensino médio de literatura, e ela foi incentivando. Ela foi o primeiro adulto pra quem eu mostrei os poemas. Meus pais foram ficar sabendo só quando eu me mudei pra São Paulo, já com 18, e aí teve um concurso nacional que eu ganhei. Foi quando eu falei pra eles.

Como funciona o seu processo de escrever?

Matheus: Eu nunca escolho escrever, nunca decidi escrever um poema. É uma coisa mental, é como estar pensando em algum assunto aleatório e de repente uma coisa se encaixa. Eu nunca tenho o poema todo na cabeça, aparece o primeiro verso e eu o escrevo no caderno, a partir desse primeiro verso os outros vão aparecendo.

E como você se organiza?

Matheus: Eu tenho um trabalho muito importante de ‘depois de escrever’. Costumo dizer que eu sou ao mesmo tempo meu pior inimigo e meu melhor amigo. Eu sempre acho que tudo está ruim ou que pode ficar melhor. Organizo, corto, rescrevo muito e às vezes só 20% do que eu escrevo é o que eu realmente guardo, o resto eu jogo fora mesmo, sem pena. Essa parte que vem depois da primeira escrita é tão importante quanto ela. Eu não tenho como só escrever e colocar lá no papel e ‘está pronto’.

Sobre o que você costuma escrever?

Matheus: A poesia é como um instrumento pra mim. Um instrumento de pesquisa sobre mim, sobre como eu vejo as pessoas ao meu redor, como eu vejo o funcionamento dessas outras pessoas, das relações humanas, enfim. Tudo é passível de ser trabalhado, não só a partir da poesia, mas de qualquer forma artística. É como se ela fosse uma ferramenta pra escavar algo e a partir disso eu consigo chegar a algo que está ali debaixo, escondido.

Quais são suas referências?

Matheus: É engraçado que logo que eu leio um livro aquilo fica alguns dias em mim, e se eu vou escrever o poema logo depois desse leitura ela aparece de alguma forma, só depois ela se dilui, vai sumindo – mas alguma coisa fica e todas as leituras vão se acumulando. Eu não gosto de escrever logo depois de ler um livro muito grande ou de ler uma obra completa, porque isso acaba aparecendo até demais. Eu sempre dou um tempinho, espero.

Como foi o processo de criação do A Máquina de Carregar Nadas?

Matheus: Eu fiquei um bom tempo escrevendo, 5 anos, e depois fiquei com ele guardado por seis meses sem nem olhar. Seis meses depois eu cortei os poemas pela metade, arrumei e cortei mais um pouco. A versão original deve ter apenas ¼ da primeira versão – ou menos. Esse é o meu jeito de trabalhar.

Qual a estrutura do livro?

Matheus: O livro tem três partes, e é basicamente um livro que se desfaz. A primeira parte tem poemas bem mais tradicionais, com metro fixo, rimas alternadas, e isso casa com o tema. São coisas muito coladas ao Eu. É algo muito fechado, e acho que isso se mostra na forma. Na segunda parte começam as quebras. Os versos vão se libertando, as rimas desaparecem e começam a entrar outros temas – os espaços, os lugares, já não só o Eu. Na terceira parte é que tudo se desfaz e entra uma poesia mais participante, mas entra como se isso desestruturasse totalmente o Eu: os poemas ficam quebrados, aparece uma prosa poética, poemas perdem título, viram um verso só. O livro vai se despindo [e desestruturando] quando o Eu entra em contato com o Outro.

Por que o nome A Máquina de Carregar Nadas?

Matheus: É um título que dizem ser meio ambíguo – e eu gosto disso. Algumas pessoas acham que seja positivo, outras que seja negativo. A “máquina” poderia representar a poesia, o ser humano, as possibilidades são muitas. E se alguém pensa ‘Como assim ela não carrega nada?’: não é nada, são “nadas”. Para os outros é nada, mas para o Eu são nadas. São nossa experiência, nossa vivência, o nosso afeto – o que somos, enfim, o que carregamos e somos.

Você acredita que Cuiabá seja um território favorável para os artistas?

Matheus: Tem muita coisa acontecendo aqui em Cuiabá. Eu não sei se é porque agora eu estou mais velho e prestando mais atenção ou se realmente tem alguma coisa diferente acontecendo. Tem muito escritor, muito fotógrafo, muito pintor, muito estilista, todo mundo aparecendo e é uma galera da nossa idade. Em Cuiabá há uma ascensão do movimento artístico no geral, em tudo.

Três poemas de Matheus Guménin Barreto – Literatura & Fechadura – 22.1.2018

(Fonte: http://www.literaturaefechadura.com.br/2018/01/22/tres-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

 

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

[SEM TÍTULO]

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

[SEM TÍTULO]

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
sempr-
e na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

 

Matheus Guménin Barreto (Cuiabá, 1992) é um poeta e tradutor brasileiro. Pós-graduando da Universidade de São Paulo (USP), traduz a poesia de Ingeborg Bachmann e a de Brecht. É editor do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e tem poemas publicados em diversas revistas no Brasil e em Portugal. Lançou em 2017 o livro de poemas A máquina de carregar nadas (Editora 7Letras).

Cinco poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto – Escriva (PUC-RS): Revista da Pós-graduação em Escrita Criativa – 8.12.2017

(Fonte: http://www.revistaescriva.com/cinco-poemas.html )

8 de dezembro de 2017

bicho das tesas patas
alertas
tentando equacionar na matemática da narina
o que é perigo o que não
alertas
os olhos alertas as
patas
alerta ele todo e aceso
queimando entre as vértebras e os músculos
o que é.*

a cegueira do homem que de seu corpo morno
soletra o corpo morno d’outro homem
os sinais as vírgulas
discursa entre duas bocas
e recita, extático e nu, a abrasada
violenta
poesia
que o corpo maquina na carne.

*

o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

*

mãos que levantaram-se e caíram
no fluir inadiável do tempo
e dia por dia ano por ano escavaram o tempo
até aqui chegarem
a estas minhas mãos morenas sob este céu transparente
sobre este teclado

mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas

o trabalho comum que é o tempo
esta conta de vidro
mão por mão gesto por gesto
feito e abandonado como as ondas consecutivas na praia
como o fio que se tece só em parte
tempo

– minhas mãos aquelas também
sob estas.

*

fiapo sequer que escape ao absurdo
que se apresente.


Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Brasil. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em “Dito ao anoitecer” (2017) e na antologia “Lira argenta” (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro “Cântico de Orge” (2017). Publica em agosto de 2017 pela Editora 7Letras seu livro de poemas “A máquina de carregar nadas”.

A variedade poética em “A máquina de carregar nadas” – Leonardo Antunes – 4.12.2017

*por Leonardo Antunes, poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Gregas na UFRGS

4 de dezembro de 2017

Matheus Guménin Barreto (Cuiabá, 1992), mestrando em Letras pela USP e tradutor de Brecht e Bachmann, acaba de lançar seu quarto livro de poemas, a máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), em que nos apresenta um admirável portfólio poético, testemunho de sensibilidade e variegada técnica no trato com a linguagem.

O livro se estrutura em três partes, constituindo um percurso estilístico que se inicia com uma estética clássica, passa por uma poética modernista e termina com exercícios de vanguarda contemporânea. Nesse percurso, passamos de uma subjetividade autocentrada que se desloca, na segunda parte, para um contato com o outro e com o horror que há no mundo. Disso, resulta uma crise, localizada na terceira parte e manifesta num esfacelamento da própria forma poética, que, logo depois, tenta se reestruturar em uma linguagem estética para nossos dias.

Da primeira parte do livro, note-se o poema abaixo, “CANTO APAZIGUADO”:

O que sobra das mãos são as sombras dos gestos
que, já feitos, nos jazem nas mãos sepultados.

O que sobra de olhares: o breve relance
que, de breve, se perde entre o feito e o lembrado.

O que resta de risos são luzes de dentes
entrevistos por entre a cortina do lábio.

O que resta da vida é a vida que fica
e ficando é que parte ao eterno adiado.

O processo notado acima, de buscar o essencial da experiência de mundo, é um dos motes principais do livro de Barreto. Esse tópos atinge sua maturação na segunda parte do livro, como se percebe no poema “PRIMEIRO”, reproduzido a seguir:

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

Esse segundo movimento, da parte central do livro, a meu ver é o mais maduro dos três. Ali, encontram-se alguns dos poemas mais interessantes do livro, como essa variação de um tema clássico da poética grega (“Para os terrestres, de tudo, o melhor é jamais ter nascido”, v. 425 do Corpus Thegonideum), no poema “O CANTO”, a partir de uma estética modernista:

[Quisera não nascer homem
ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é nunca ter sido]

Olhai o galho à janela.
É duro e de morrer não nasce
e sem nascer e sem morrer deita
[à eternidade
a face.

Olha o gato esquecido de nascer.
Olha o cão olha o peixe olha a ara-
nha.
Esquecidos de nascer
[nascem
e perduram no tempo comprido.

Quisera não nascer homem
[ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é não ter existido]

A terceira parte do livro, por sua vez, traz poemas bastante experimentais, como um que se resume a pautas musicais com uma grave nota “Sol” repetida por algumas páginas, como resultado do esfacelamento da linguagem durante o percurso de contato do eu com o mundo.

No todo, perdura no livro de Barreto uma extrema sensibilidade em lidar com as coisas cotidianas e delas extrair uma experiência que nos move. Mesmo em poemas minimalistas, como são muitos dos da terceira parte, o poeta é capaz de prender nossa atenção com alguma imagem construída com concisa precisão, como a do poema abaixo, sem título:

raia a navalha do sol
límpida, ascética, dura

Com a apresentação dessa variedade de estilos e tendências, todas perpassadas por uma voz de arguta sensibilidade, Barreto demonstra maturidade poética, deixando-nos com a certeza de que possui amplitude técnica para produzir poesia de alta complexidade formal em qualquer estilo em que decidir se experimentar.

Breve leitura de “A máquina de carregar nadas” – Gustavo Matte – 25.11.2017

*por Gustavo Matte, poeta e doutorando em Teoria Literária na PUC-RS

25 de novembro de 2017

“A máquina de carregar nadas” é um livro interessantíssimo, construído em forma de “acumulação progressiva”, onde cada poema vai somando ao anterior ou o elevando ao extremo. Se, por um lado, os primeiros momentos são de certa rigidez formal, no sentido de ter regularidade e solidez no ritmo e nas melodias – contrastando, no entanto, com o etéreo dos temas -, a relação entre forma e tema vai gradativamente aumentando em tensão, até explodir em uma espécie de “abstração-limite”, num gesto que lembra o “poema-processo” – com rabiscos cegos seguidos de pautas musicais em que se repete, monotonicamente, a mesma nota “sol”, até desaguar no silêncio branco de uma página vazia. É nesse momento que o livro abandona completamente a experiência verbal-semântica para convidar o leitor a encarar uma breve jornada de experiência poético-sensorial, dissolvendo os limites (ou experimentando neles) entre a poesia e outras formas de arte.

Cinco poemas de ‘A máquina de carregar nadas’ – Mallarmargens – 26.10.2017

(Fonte: http://www.mallarmargens.com/2017/10/cinco-poemas-de-maquina-de-carregar.html )

 

MANHÃ

a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
——————————- fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

NA ESTREITA BAÍA DO CORPO

a –
Onda: eterna insuficiência,
fadada a sempre cortejar o nunca
sobre uma terra que se lhe foge
perto e inalcançável.

*

O QUE SOBRA DO HOMEM

Caminha e se deita e dorme
todas as noites
a pensar no que poderia ter sido
e se perdeu nas dobras do tempo e
em rumorejos de água cristalina.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

UMA ARQUITETURA DA CONCHA
“Para aquele que deu a concha”

1.
Que esta concha entre os dedos recolha
e decante em silêncios a voz
agitada em trovões – mar o crânio –,
que a decante e que a anule depois.

2.
Que recolha entre os vórtices secos
todo o eco dos mares confusos,
que o recolha e decante em silêncios
e apascente o traçado dos fusos.

3.
Que esta concha entre os dedos anule
o que dentro de alguém é loucura.
Que ela guarde, meu Deus, da loucura,
que é o que acha quem muito procura.

4.
Que estas conchas recolham do fundo
já sem fundo das curvas do mar
o olhar tão cansado do homem

– e o devolvam depois, pra guiar.

 

Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Mato Grosso. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017) – parceria entre Selo Demônio Negro, Editora Hedra e a editora portuguesa Douda Correria. Publicou em 2017 seu livro de poemas A máquina de carregar nadas pela Editora 7Letras.

Poemas publicados e inéditos, resenhas e links para compra do livro A máquina de carregar nadas: https://matheusgumenin.com/

E-mail para contato: matheusgumenin@hotmail.com

Revista Lavoura – 10.2017

Poema inédito disponível na Revista Lavoura, página 18.

Link: https://www.yumpu.com/pt/document/view/59473745/revista-lavoura-n2

Os outros colaboradores são: Ana Rüsche, Tarso de Melo, Bruno Molinero, Danilo Brandão, Laura Torres, Maiara Líbano, Daniele Queiroz, Edson Amaro De Souza, Elisa Andrade Buzzo, Jeanne Callegari, Nicolas Casal, Paulo Ferraz, Susana Pereira, Teofilo Tostes Daniel, Fernando Ide Kuratomi, Christiano Whitaker, Heitor Rodriguês, Priscilla Menezes, Tatiana Timm, Sérgio Tavares, Joëlle-Marie Declercq e o ex-prefeito Fernando Haddad.

Editores: André Balbo, Anna Brandão, Arthur Lungov e Lucas Verzola

Como é possível um homem? – Marília Beatriz Figueiredo Leite – 28.9.2017

*por Marília Beatriz Figueiredo Leite,
presidente da Academia Mato-Grossense de Letras
(Fonte: http://circuitomt.com.br/ )

28 de setembro de 2017

CRÍTICA LITERÁRIA: No dia 16 de setembro houve o lançamento do livro de poemas “A máquina de carregar nadas”, de Matheus Guménin Barreto. Matheus cursou Letras Português-Alemão na USP, onde cursa hoje pós-graduação em tradução de poesia alemã. A Presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, nossa imortal Marília Beatriz Figueiredo Leite comenta aqui o que achou sobre este segundo livro do poeta cuiabano.

***

MATHEUS GUMÉNIN BARRETO traz em seu mais novo livro – verdadeira Bíblia Poética – a obra de arte pronta como oferta, como realização de dizeres da Vida enquanto signos da escrita e ícones do silêncio.

Para ela conflui não o saber fazer, mas sim o lançar do sabor de fazer transformador da pura realidade em máquina instauradora das possibilidades – de um real que não se apresenta como NADA, pois persegue e prospecta as possibilidades da produção …

O rumor questionador ou o silêncio prospectivo criam a impressão daquilo que Antonio Candido chama atenção: “…o panorama é dinâmico, complicando-se pela ação que a obra realizada exerce tanto sobre o público, no momento da criação e na posteridade, quanto sobre o autor, a CUJA REALIDADE SE INCORPORA EM ACRÉSCIMO, E CUJA FISIONOMIA ESPIRITUAL SE DEFINE ATRAVÉS DELA”

É dentro desse entesouramento que Matheus G. Barreto vai tracejando, construindo como edifício o seu escrever a identidade da desenvoltura do equívoco em Nada. Inexiste nada em Máquina. O que se retira desse nada é a construção obsessiva e sábia de um poeta em busca da fonte da Ars Poetica, que se impõe com o vigor das questões, “do branco sobre o branco é nada”.

Sinto na poética da máquina, no costurar do autor, no traçar que fagulha do livro, o amor que captura como raiz e que irrompe num frêmito a pesquisa da alma literária, e que como um foguete parte em busca da amplidão de um horizonte literalmente emocional.

Ainda dentro de descrições que apontam infelicidades(?): de um momento para o outro se faz estrutura, e o estilo seduz – retirando de todos leitores e autor a mesma face ou a mesma parte que enfeixa seu colaborar com um universo particularmente uníssono:

“NA ESTREITA BAÍA DO CORPO
a-
Onda: eterna insuficiência,
fadada a sempre cortejar o nunca
sobre uma terra que se lhe foge
perto e inalcançável.”

(BARRETO, Matheus Guménin. A máquina de carregar nadas)

Creio que aqui são lançados dentro da circulação da roda, onde arte, realidade e o Nullit se fundem para, edificados em templo, não se confundirem.

Eis Matheus poeta/mágico, poeta/engenheiro, poeta/filósofo que provoca nestas múltiplas constituições o instalar de um centro de forças que suporta a distribuição do bem poético.

Pois bem “a máquina de carregar nadas “ é a conjuntura de partilhar o pão da poesia bem arquitetada, ou a bíblia de acrescer preceitos de amoressência .

E mais não posso escrever, pois tenho muito ainda a ouvir ‘inside’ Matheus – com belezas.

*ocupante da cadeira n°2 da Academia Mato-Grossense de Letras, Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e professora adjunta da UFMT-aposentada.
Quase noite da primavera inaugural cuiabana. Setembro de 2017.

Assim na Terra, como em Matheus – Luiz Renato de Souza Pinto – 26.9.2017

*por Luiz Renato de Souza Pinto
(Fonte: http://www.cidadaocultura.com.br/assim-na-terra-como-em-matheus/ )

26 de setembro de 2017

Começo a escrever esta crônica no dia 20 de setembro de 2017 (D.C). O Rio Grande do Sul está em festa. Mais um aniversário da revolução farroupilha. Folheio as páginas de Assim na Terra, romance do (falecido) autor gaúcho Luiz Sérgio Metz. Li o livro e conheci o autor no ano de 1993 ou 1994. Morei em Porto Alegre em 1996, quando já era falecido (em 20 de junho daquele ano). Estava à entrada do Bar do Beto, já no endereço novo na Avenida Venâncio Aires (meio do quarteirão), próximo ao Parque da Redenção, na capital gaúcha quando pude entabular uma conversa com ele. Isso voltou a acontecer mais uma ou duas vezes, não me recordo bem ao certo.

Não me recordo bem ao certo, mas na capital gaúcha, naquele ano li muito sobre o Rio Grande, a cultura gauchesca, na verdade fiz um mergulho na literatura rio-grandense para compreender esse espírito aventureiro e conquistador que vem dos pampas engolindo o Brasil, espaçando-se pelo território nacional, sobretudo a partir da era Vargas. E o livro de Metz sobra em meio à maioria dos escritos que pude percorrer. Agora me surpreendo quando, dentre outras citações, deparo-me com uma de seu romance no livro de poemas de Matheus Guménin Barreto, lançado recentemente a máquina de carregar nadas.

Carregar nadas; volta à minha cabeça o momento em que troquei duas ou três palavras com o escritor. À época eu viajava o país a vender poesias nos bares vestido de garçom, personagem que retiro do armário para empreender novas buscas por leitores, às vésperas de lançar novo livro de poemas, vinte e quatro anos depois de Cardápio Poético.

Cardápio poético: em busca da data exata de falecimento do Jacaré, alcunha pela qual era conhecido, deparo-me com um artigo escrito por Matheus sobre Assim na Terra, o que me fez compreender melhor as razões de seu encantamento com o romancista de um livro só (ele publicou outros dois, mas romances, foi o único). Como estamos no mês de setembro prefiro uma citação que introduza o leitor ao livro pelo começo, cujo primeiro tópico é PRIMAVERA…

Setembro respinga asas em nossos olhos, tudo está dentro de alguma coisa que não sabemos onde, os travesseiros se iluminam. Cheiro de voo no ar. Setembro põe polens na barba dos avós. Enluara os pentelhos das nossas mães. Muda de casa nossas irmãs. Os irmãos, sem paradeiro, olham fixo nossos pais, que fumam olorosos cachimbos às oito da noite lendo enciclopédias sobre vedas e obscuros fenícios que devolviam seus remos a Cartago (METZ, 2013, p. 9).

Primavera: estive em São Leopoldo em abril deste ano em um congresso sobre decolonialidade, na UNISSINOS, e passeando pelas livrarias da cidade (encontrei duas) adquiri uma segunda edição do livro de Metz. Vi-o, flertei com o livro e voltei no dia seguinte para buscá-lo; trazer para casa, para o meu convívio. Um primor, como todas as obras da recém-falecida editora Cosac Naify. Agora, inspirado pela leitura de Matheus, volto às páginas do Jacaré para saborear sua erudição mesclada com o linguajar pampeano, trinacional por excelência.

Por excelência, a vertigem provocada pelas construções do jovem poeta cuiabano traz certa simetria ao olhar despretensioso com o qual me dirijo paulatinamente às suas construções. Em meio aos andaimes cabralinos de sua poética, da qual ressurgem fantasmas e espectros variados da cultura ocidental, vou pescando intertextualidades febris que se enamoram discretamente de meus pontos de vista. Li o livro no próprio local do lançamento e metade cheio de primeiras impressões, esvaziei-me do contágio ao dialogar rapidamente com o poeta em face do imprevisível arrebatamento pela referência ao Metz.

Referência ao Metz: para fugir ao clichê de tecer comentários acerca da erudição do uspiano, recolho-me a uma referência que me pareceu implícita e que me lembrou os corredores da faculdade de letras da UFRJ, quando, no final dos anos 1980 pude comercializar livros usados em um mini sebo que funcionou por dois anos naquele local. Convivi com pessoas bastante interessantes, dentre as quais um jovem irrequieto de nome Carlito Azevedo, hoje poeta premiado e dono de erudição invejável para os padrões pequeno-burgueses da cultura nacional.

Cultura nacional: A poesia de Matheus me traz à luz essa referência. E talvez por aí compreenda a importância da referência de Assim na Terra em sua literatura.  Depois da GEOMETRIA QUANDO AINDA HÁ CHÃO, em que os silêncios copiados a lápis de sua poesia rastejam no terreno pantanoso das palavras; da CARTOGRAFIA PROVISÓRIA, em que os mapas da construção poética se misturam dos pés à cabeça com a gênese vocabular de uma escrita palimpsestica, há uma POESIA OUTRA VEZ EM PÂNICO & RETOMADA, de onde surge também a sua primavera, poema em prosa no melhor estilo baudelairiano, que se costura ao ramalhete de infusões com as quais o Jacaré tempera seu caldeirão mítico de referendos: Fellini, Eliot, Mallarmé, Bashô, Kafka, Goethe e Haroldo de Campos, como observa Jerônimo Teixeira, em fragmento decalcado à contracapa da edição da Cosac Naify. Decantam-se os versos de Guménin Barreto, à página 59 de seu belo livro:

pode um homem morrer na primavera? e o grito todo e toda a lágrima e o fio branco e a vida engasgada na garganta de quem fica? o fruto o fruto o fruto da vida engasgado na goela da mãe quando o fruto do seu ventre – cai? (é primavera é primavera é primavera caem os frutos? caem os frutos na primavera? caem caem os frutos?) (BARRETO, 2017, p.59).

Belo livro: vida longa para o autor de a máquina de carregar nadas. Que nos brinde com muitas primaveras e que a gente também viva o suficiente para abrigar em nosso peito o aroma indócil de uma poesia agressiva pela erudição premente e suave pela doçura incompreensível de palavras incontestes. Que há futuro nesse veio, não tenho dúvidas. Que venham outros livros deste faiscamento e que nós, pobres mortais, vivamos o suficiente para abrigar em nossos agadês externos e internos mais arabescos dessa pseudo pós-modernidade tardia que se liquefaz diariamente aos nossos olhos marejados de tanta luz e sombra. É primavera; e os que viverem mais verão!

Os alquimistas estão chegando – Eduardo Mahon – 17.9.2017

*por Eduardo Mahon

17 de setembro de 2017

O poeta Matheus Barreto lançou o segundo livro de poemas. Para mim, uma promessa que se realiza. Sentado à minha frente, 1 ano atrás, ele me explicava as três fases que iria se propor a experimentar no livro. Me confidenciou: haverá páginas em branco, sem ter o que dizer e, depois, uma retomada forte. Fiquei esperando a massa fermentar e, na fila do pão, fui precedido apenas por uma poeta mais ligeira, Lucinda Persona. Vim para casa, li o livro à noite para relê-lo, na manhã seguinte. É que a poesia, como os lobisomens, têm duas formas: uma diurna, racional, cognoscível, organizada, apolínia e outra, noturna, risonha, trôpega, dionisíaca a agradar leitores bêbados de novidades.

Matheus escreve sobre a dissolução e a perenidade, assunto para alquimista. Na primeira parte de “A Máquina de Carregar Nadas”, pela editora 7 Letras, trata de separar os elementos mais preciosas das coisas que ficam entranhadas e com elas se misturam. Talvez por essa razão alquímica, o poema inaugural seja mesmo o “canto de dissolução”, onde o tempo atual no cadinho mágico: “sepultados, enfim,/ no tempo, todos nós.//Onde não há nem feito,/ nem pessoa, /nem voz”. O autor prossegue no ofício da separação: o nome da voz, a voz do homem, o lápis da ideia, o sentimento do peito, o sal do mar, o ser da carne e, por fim, a própria consciência: “Já sabe ele ser? Não sabe/ Se soube, desaprendeu./ Será que um dia o homem/ é só seu?”. A fim de evitar tanto sofrimento nesse processo de decantação, o poeta decreta o esquecimento “e, com o tempo, esquecer-se do tempo”.

A poesia é existencial em Matheus Barreto. Não tem aquela simplicidade do pão amanhecido, do chinelo virado, da salada com nozes. A narrativa, a temática, a estrutura do livro quer pensar o ser por ele mesmo, ir a fundo, mergulhar na essência. Dentro de um “tempo sem tempo” como o escritor faz menção à segunda parte “cartografia provisória”, investiga onde encontrará a própria poesia: na boca, debaixo da pedra, no copo d’água. Para mim, trata-se das etapas da conjunção e da fermentação. É ali que os objetos emanam o que têm de inato. O Matheus sartreano dá espaço ao Matheus platônico, debatendo-se entre a forma e a essência. No poema “Missa de 7º Dia”, por exemplo, ainda há visível o trabalho de depuração. A cama que carregava o morto precisa de limpeza, ar, sol, para que a sombra da morte – e do morto – desgrude-se do objeto.

Nesse paradoxo existencialista e platônico, naturalmente viria a pergunta: e se as coisas não completarem a missão para a qual são feitas? É claro que o poeta vai falar de si: “E o que fazer quando o homem/ de nome emprego identidade/ não sabe se o que olha no espelho/ existe – e, se existe, em que parte?” No ceticismo, Matheus Barreto encerra a segunda parte e começa a terceira, uma literal “retomada”, sem a tradicional estrutura poética, abundando espaços vazios, com perguntas sem respostas, inversões de sentido – “você está com a boca cheia de silêncios”. Páginas e páginas em branco, pautas musicais sem notas, um vazio melancólico de quem foi ao fundo do poço. É a destilação poética. Finalmente, o nosso alquimista volta ao poema e se torna maduro. Aprende que o mar é a gota, a cor é o olho, a poesia é instante. Toma uma resolução “quem tem/ coragem/ de/ falar// quando a fala/ sabe/ que sua única voz/ verdadeira/ é quando cala”.

No fim, Matheus Barreto percebe que eloquência demais violenta a palavra. É preciso dizer pouco e, ainda assim, correr o risco de tudo ser inútil. Aí está a coagulação da palavra! Esse é um livro de um poeta culto (que também quer parecer culto com tantas referências intra e intertextuais), fortemente influenciado pela contemporaneidade de Bertold Brecht, para o qual o desenlace é menos importante do que a ação e o ciclo contínuo é o ator principal da vida. Para onde ir não interessa, o importante é caminhar. Do meu ponto de vista, este segundo livro, muito mais curto, objetivo, refletido do que o primeiro, marca uma maturidade antecipada de um rapaz que ainda não tem a barba cerrada, mas que já se iniciou com os alquimistas das palavras.

 

Entrevista no Diário de Cuiabá – 16.9.2017

*por Enock Cavalcanti
(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=507804 )

16 de setembro de 2017

 

Fruto de um trabalho de cinco anos, o escritor e poeta cuiabano Matheus Guménin Barreto lança em sua cidade natal o livro de poemas “A máquina de carregar nadas”. O lançamento acontece neste sábado, às 19h30, no café-bar Metade Cheio, na rua Comandante Costa, 381, bem no coração de nossa capital.

Matheus atualmente mora em São Paulo, onde faz pós-graduação em tradução de poesia alemã e onde também cursou Letras Português-Alemão, na Universidade de São Paulo (USP). Seus poemas já foram publicados em revistas especializadas no Brasil e em Portugal. Estudou por um ano na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e em 2017 foram publicadas traduções suas de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. No mesmo ano apresentou em Cuiabá palestra intitulada “5 décadas, 5 poetas” sobre os poetas brasileiros João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Conceição Evaristo, Lucinda Nogueira Persona e Ana Martins Marques.

Via e-mail, o DC ilustrado conversou com o poeta, que explicou como e por que dedica sua vida à poesia.

Diário de Cuiabá: Você tem dedicado sua vida à poesia, seja nos estudos, seja na produção literária. Por que essa opção?

Matheus Guménin Barreto: Não sei bem se essa foi uma opção consciente minha, ou se as coisas simplesmente se encaminharam de um jeito que ‘acabei poeta’. Acredito mais na segunda opção.

Desde cedo tive um interesse enorme por literatura: comecei a ler por prazer já aos 9 anos de idade (livros infantojuvenis, claro), e acho que desde os meus 14 ou 15 anos não termino um livro sem já ter o seguinte à mão. Nos primeiros anos eu lia apenas prosa, e só aos 15 ou 16 comecei a ler poesia. O engraçado é que comecei a escrever poesia quase que na mesma época em que comecei a ler poesia. Lembro-me que tive na escola uma aula sobre Gonçalves Dias: nesse mesmo dia voltei para casa com o ritmo de um dos poemas martelando tão forte na minha cabeça que escrevi meu primeiro poema naquela mesma estrutura rítmica. É claro que esse meu primeiro poema não era lá muito bom, mas assim comecei a escrever poesia.

Além desse fator ‘gosto pela leitura’ há um outro, tão importante quanto o primeiro no meu desenvolvimento como poeta: o fator ‘privilégios sociais’. Foi por causa deles que tive acesso a centenas de livros, tempo livre para treinar a escrita, tempo livre para pensar na escrita. Acho que é importante reconhecermos nossos privilégios para não cairmos naquela velha história da ‘meritocracia’ – que não existe, é claro. Ter privilégios sociais não me fez poeta, mas certamente facilitou o caminho – e não tê-los dificultou o de outras pessoas igualmente capazes.

Nos anos seguintes escrevi demais: algumas publicações; centenas e centenas de poemas por mês, quase todos medianos ou ruins – mas acho que esse processo todo foi muito importante para o desenvolvimento da minha escrita. Hoje estou muito contente com o que escrevo. Costumo dizer que sou meu pior inimigo na escrita: não tenho pena de jogar páginas e páginas no lixo. Acho que é importante ter um olhar crítico em relação à própria obra, saber se desvincular emocionalmente de um texto seu quando se está revisando esse texto.

Venho trabalhando há 5 anos em “A máquina de carregar nadas”, e depois de cortes, cortes e mais cortes cheguei a um resultado que me deixou muito feliz. O lado bom de avaliar duramente seus próprios textos é ter a liberdade e a leveza de se alegrar depois, quando se chega a uma versão final.

D.C.: O título do livro “A máquina de carregar nadas” tem algo de melancólico. É triste a sua poesia ou ela guarda algumas alegres surpresas para seus leitores?

M.G.B.: Não vejo minha poesia como uma poesia triste – assim como não a vejo como alegre. Acho que a poesia (e a arte de modo geral) está num outro lugar, num espaço além do ‘triste’ e do ‘alegre’. Acho que a poesia (pelo menos a que me interessa) tem a função de puxar o tapete, de nos tirar do modo automático, de nos fazer observar o que somos e o que as outras pessoas e coisas são. Então não, eu particularmente não acho que minha poesia seja triste.


D.C.: Poeta com espaço que se amplia pelo Brasil e pelo mundo, qual a importância de lançar seu livro também em Cuiabá?

M.G.B.: Nasci e cresci em Cuiabá, então acabei criando uma relação afetiva com a cidade ou com a imagem que tenho da cidade. E acho que isso cresce com o tempo, esse sentimento em relação ao lugar onde se nasceu. Talvez com o tempo a cidade ‘bote a gente comovido como o diabo’. Seja como for, Cuiabá sempre vai ter um espaço privilegiado na minha cabeça. Aliás, estou há alguns meses escrevendo um poema-livro em torno de Cuiabá.

D.C.: Como é que Cuiabá e Mato Grosso influenciam sua produção literária?

M.G.B.: A presença de Cuiabá na minha escrita cresce com o tempo: nos primeiros anos se percebia pouco ou nada de Cuiabá nos meus poemas; nos últimos dois anos vem ganhando um espaço cada vez maior no que escrevo. Alguns meses atrás publiquei no próprio Diário de Cuiabá um poema chamado “Cuiabá/Chapada dos Guimarães”, que para a minha alegria foi comentado pela grande Lucinda Nogueira Persona. E, como comentei na resposta anterior, venho trabalhando há alguns meses em um poema-livro em torno de Cuiabá.

Acho que morar em outro lugar acaba criando uma relação estranha e interessante entre qualquer pessoa e sua cidade natal. Sempre há alguma coisa a se desenterrar.

D.C.: Depois dos estudos na USP, que caminhos você pretende seguir?

M.G.B.: Acabei de passar pela qualificação de minha dissertação de mestrado, que é sobre tradução de poesia alemã. Quero terminar o mestrado, já fazer o doutorado e depois começar a dar aulas em alguma universidade. Não me vejo trabalhando com outra coisa. Mas nunca se sabe, não é mesmo? Já no campo da poesia, pretendo simplesmente continuar a escrever. O bom da arte é que nunca se alcança aquilo que se quer: a busca é contínua, não há ponto final. Arte é movimento. E isso me enche de alegria.

“O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto – Caio César Esteves de Souza – 8.9.2017

*por Caio César Esteves de Souza
(Fonte: https://exerciciosdecriticaliteraria.wordpress.com/2017/09/08/o-nulo-poetaema-de-matheus-gumenin-barreto/ )

8 de setembro de 2017

Como disse lá na página Sobre, fiz este blog para escrever alguns exercícios de crítica literária despretensiosos sobre textos que eu tenha lido e achado interessantes por algum motivo. Para dar um pontapé inicial, nada melhor do que discutir um texto recente, ainda fresco e, até onde sei, não visitado por outros críticos literários. Escolhi para isso o poema “O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto.

O poema foi publicado no livro de reestreia do Matheus, chamado A Máquina de Carregar Nadas, lançado pela 7Letras há mais ou menos um mês. Esse poema abre a terceira parte do livro, intitulada “Poesia outra vez em pânico & retomada”, e não poderia estar em seção mais apropriada. Já na abertura dessa terceira parte, encontramos três epígrafes bastante interessantes, das quais nos interessa principalmente a tirada de Onde Vais, Drama-Poesia, de Maria Gabriela Llansol: “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”

Como o texto é curto, vou copiá-lo aqui embaixo, antes que eu estrague a experiência de um primeiro contato com ele:

 

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
………………………….[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

 

Tenho a impressão de que toda a força desse poema vem do uso da repetição em diversos níveis de leitura. Quando o li pela primeira vez, tive que admitir a minha ignorância já no primeiro – e segundo, e terceiro e, com outra cara, quarto – verso, e parei a leitura para, com alguma vergonha, ir ao Google descobrir quem eram hutus e tutsis. Quando descobri que estavam ligados ao genocídio que ocorreu em Ruanda em 1994, voltei ao texto seguro de que, agora, entenderia as suas referências. O que eu não sabia é que, ao buscar essas referências, tinha me tornado refém do poema.

Do sexto até o penúltimo verso, o poema discute o nosso desconhecimento dessas etnias, que implica o esquecimento de um genocídio que matou cerca de 800 mil pessoas em apenas 100 dias (quase seis pessoas mortas por minuto), e levou cerca de 2 milhões de pessoas a se refugiarem no país vizinho, Zaire – hoje, República Democrática do Congo.

Em uma breve pesquisa, encontrei imagens assustadoras da barbárie que tomou as ruas de Ruanda após o atentado que matou o presidente Juvenal Habyarimana (da etnia hutu, majoritária no país). Sem que uma investigação adequada fosse feita, um grupo político tutsi foi acusado de ter planejado o ataque que derrubou o avião presidencial, e milícias hutus saíram às ruas exterminando qualquer pessoa que pertencesse à etnia tutsi, inclusive idosos e crianças. Muitas vezes, as armas utilizadas eram facões domésticos, que ainda hoje marcam a fisionomia dos sobreviventes […].

A história é horrível, e quanto mais lemos sobre, mais impactante ela se mostra. Diante dessa barbárie, o poeta (criado pelo poema) se abisma com o “pecado” de não saber o que são tutsis, nem quem são hutus, ou onde fica Ruanda. Boa parte do poema se constrói a partir de uma série de versos truncados que repetem expressões bastante típicas de pesquisas online: “tutsis o que são/ o que são tutsis / quem são / hutus”. No entanto, essas perguntas nunca se fecham. É como se antes que a pergunta pudesse ser finalizada – isso é, antes que a interrogação pudesse ser posta – o poeta voltasse atrás, horrorizado com a possibilidade de estar perguntando aquilo, e buscasse se corrigir, emendar o esquecimento. No entanto, esse apagamento não pode ser desfeito e o texto se torna caótico, criando um tipo de fluxo de (in)consciência. A voz que enuncia esse poema tenta se ressignificar constantemente, mas diante do absurdo ético de seu esquecimento, não consegue achar saída que não seja repetir diversas vezes o vazio que busca calar.

Quando o Matheus escolhe utilizar essas perguntas bastante típicas de buscas no Google e em sites afins, ele causa (conscientemente ou não) um efeito muito interessante no seu leitor. É muito provável que, como eu, outros leitores tenham recorrido à internet para descobrir quem são hutus e tutsis. Quando retornamos ao poema, vemos um dedo em riste que nos acusa: “pecado de não saber o que são tutsis”. Essa mão que nos acusa também acusa a si própria e, repetindo as mesmas perguntas que o leitor fez momentos atrás, faz com que a sua fala desesperada e desordenada se transforme em nossas próprias palavras. Já detemos a resposta para as perguntas, mas ainda assim nos vemos condenados a repeti-las junto com o enunciador, sem que possamos fugir desse transe verbal.

A perversidade do poema vem no último verso: ” – a maioria a golpes de facão.”. Pra mim, esse verso tem dois efeitos, em dois planos de leitura. Inicialmente, ele me força a voltar ao poema e relê-lo. Aí, percebo que o facão perpassa todo o texto. Alguns versos são particularmente explícitos, como “pelo pecado pelo pec- / ado”, e “peca/do” (neste último caso, a barra está presente já no verso). No primeiro desses versos, a quebra da sílaba tônica de “pecado” cria um som desagradável que leva o verso a terminar em uma oclusiva surda “pec-“, e que nos força não apenas a ouvir, mas a pronunciar o som de um golpe de facão que põe fim à vida, desmembrando um verso em dois, como se separasse uma cabeça de seu corpo, fazendo-a rolar para o verso seguinte. No segundo, a cisão é menos acentuada, já que não altera a constituição das sílabas, mas nos obriga a fazer uma breve pausa no meio da palavra, e nos força a perceber com desconforto a barbárie que é retratada pelo texto.

Em geral, a repetição nos traz a sensação de acúmulo de sentidos. No caso deste poema, ela nos mostra a falta, o fragmento e a morte. As perguntas, ao se repetirem, não se completam e se encontram sempre em pedaços, esquartejadas. O extermínio, o pecado, Ruanda, hutus e tutsis são produzidos nesse poema em fragmentos. Em outras palavras, o poema reproduz o genocídio sobre o qual fala em sua própria forma. E faz isso de maneira aguda e perversa, que só permite que o leitor perceba o artifício no último verso, quando já foi por ele envolvido.

Em outro plano de leitura, o último verso força o leitor a se identificar ainda mais com o enunciador, ao deixar claro ao fim do verso que o poeta-pecador – que não sabe “o que são tutsis”, e que se mostra em um caos/transe verbal tentando fugir do esquecimento -, na verdade, conhecia de antemão as respostas a todas as perguntas que propôs durante o texto. Da mesma forma, o leitor sabia dessas respostas quando se deixou levar por esse transe verbal que refazia seus passos. O último verso mostra que esse caos é artifício, assim como todo o desespero que ele produz. Nesse verso, a pontuação volta ao normal, a frase se completa, o genocídio é reproduzido com sucesso na forma de todo o poema e o leitor, que se identificou com essa voz durante mais de vinte versos, se olha no espelho e se percebe com sangue nas mãos.

Dá pra falar muitas outras coisas sobre o poema, mas acho que já abusei da paciência dos dois ou três que tiveram ânimo para me ler até aqui. Esse é um dos melhores poemas que li recentemente, e faz parte de um dos melhores (se não o melhor) livros de poesia que li nos últimos anos. Matheus Guménin Barreto é um daqueles poucos que sabem que poesia não é espinha e, portanto, não brota espontaneamente. Ela é construída, com muito trabalho, leituras, releituras e paciência. Por isso ele escreve tão bem. Sem dúvida, é um dos grandes da nossa geração. O seu poema representa de forma muitíssimo eficiente o que estava exposto na epígrafe de Llansol “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”. Esse poema é um daqueles que apresentam a poesia como agressão e violação do leitor. Nos envolve apenas para, ao fim, nos largar em meio a uma barbárie produzida por nossas próprias mãos. Não há espaço para redenção. Não há perdão para o sangue já derramado. Em suma, é grande poesia.

Quem quiser deixar um feedback (positivou ou não) nos comentários, sinta-se à vontade! Além disso, podem me mandar mensagem na página Contato ou, se preferir, pelo Facebook ou Twitter. Pretendo postar textos deste tipo periodicamente, então esse retorno é importante para saber se este formato de texto funciona em um blog deste tipo. Até mais!

Lições através do vento – Lucinda Nogueira Persona (Diário de Cuiabá) – 8.7.2017

*por Lucinda Nogueira Persona
(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=505392 )

8 de julho de 2017

A paisagem nasce na luz do olhar e representa um desafio à sensibilidade. Algumas vezes (senão todas) causa tamanho fascínio ou inquietação, ao ponto de levar o espírito às mais variadas expressões, principalmente na arte, dentre as quais a poesia responde com absoluta presteza.
É o que se observa no poema “Cuiabá/Chapada dos Guimarães”, de Matheus Guménin Barreto, sendo posto a serviço do leitor. No referido poema, o jovem autor trabalha com comarcas imanentes da existência: a passagem do tempo, os sonhos, as transformações, a morte. Sua visão particular recai sobre um patrimônio natural, um clássico comovente da geomorfologia mato-grossense, aquele que emoldurando o horizonte quando se olha de Cuiabá, traz a ideia de um lugar que não se pode deixar de conhecer.
Trata-se da extensa área de planalto, o relevo da Chapada dos Guimarães, com grandes encostas e escarpas de arenito vermelho, soerguidas a 600 ou 800 metros de altitude. Entretanto, isso ecoa como informação de uma aula um tanto comedida, padronizada. E esta não é a perspectiva do poeta, já nos versos iniciais: “O vento professa à rocha / suas aulas do desfazer-se / de tudo no tempo. O vento / arranca, da rocha, a areia”.
Matheus Guménin nos fala em termos de uma lição mais extensa, prática e fabulosa, na qual o professor é alguém que não para nunca, em milhares de anos de aulas diárias; a aluna é empedernida, conformada em seu torpor mineral e a sala de aula, nada convencional, está a céu aberto, sobre um chão cujo evento geológico mais recente (e que lhe deu a face atual) remonta a 15 milhões de anos. Desse chão emergem rochas varridas pelo vento. E o vento, de onde quer que venha, intenso ou não, dia a dia faz seu trabalho na pedra, que se perde como areia. Assim, a paisagem surge com força impositiva na argamassa do poema, onde as partes de um cenário colossal são evocadas para a tradução de uma experiência vinculada aos efeitos do tempo sobre as coisas e os seres.
Vários elementos podem ser apontados nas considerações de um dado poema, mas aqui, na sólida construção de 15 estrofes de Matheus Guménin, o grato parâmetro é a fração da natureza absorvida pelo olhar. Construindo o poema a partir da desconstrução das rochas pelo vento, o poeta revela um pouco daquilo que pensa, sente e acredita ser o mundo, a vida e a linguagem. Emoção e razão se contrabalançam em suas mãos e a forma adotada faz vislumbrar certa filiação ao universo cabralino. Ao longo do poema, o autor elege e agrega alguns signos (escola, lição, pedra) que nos remetem de algum modo ao “A educação pela pedra” de João Cabral de Melo Neto.
Na elaboração de Matheus Guménin, o sujeito poético se posiciona fora dos eventos que descreve, mas não deixa de estar diante do mundo, diante da vida e de si mesmo, como vítima da experiência. Uma experiência repassada para todos aqueles cujo apetite pelas transcendências seja inesgotável.

Lucinda Nogueira Persona: professora, poeta e membro da Academia Mato-grossense de Letras.

*

Cuiabá/Chapada dos Guimarães
(Matheus Guménin Barreto)

O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento
arranca, da rocha, a areia:

de grão em grão faz escola:
a rocha, no ensinamento,
é aluna: na lição dura
de nada durar no tempo.

Os rubros montes de areia
– Chapada dos Guimarães
em torno de Cuiabá –
aprendem suas lições.

Os montes de forma fraca
desfazem-se ante um ditado
do vento: de que o que o homem
ergueu, o que ele escancara,

esconde e derruba o tempo:
que aquilo que o braço monta
o sopro derrubará:
que aquilo que o sonho encontra

e o homem faz realidade
o tempo outra vez o acha
e torna outra vez em sonho
que ninguém mais sonhará.

Paciente labor do vento,
irmão mais novo do tempo,
que esculpe Chapada grão
por grão: apesar de lento,

certeiro é no seu trabalho:
que é muito apesar de pouco,
que é grande mesmo pequeno,
que é muitos trabalhos poucos.

Os montes têm nessa escola
lição de se desfazer:
que o pouco que faz o homem,
que o muito que o homem vê

apaga-se sobre a pedra
do tempo em geometrias
secretas ao despencar:
desfaz qual desfeito é um dia

na barra vermelho-roxa
da tarde, em seu é-não-é.
Aquilo que o homem faz,
aquilo que o homem vê,

aquilo que o homem cala,
aquilo que o homem diz,
aquilo que o homem prende
aquilo que o homem quis

aprende a lição que aprende
o monte, ao se desfazer.
O monte rubro-laranja:
quando ele iria dizer

do tempo o grande segredo,
a resposta que se espera —
despenca em areia branda
pra lá do que já não é.

O vento professa à rocha
suas aulas do desfazer-se
de tudo no tempo. O vento,
de régua em mãos, instrui: tempo.

27/06/2017

 

Uma impressão sobre sete poemas de Matheus Guménin Barreto – Caio César Esteves de Souza – 30.5.2017

*por Caio César Esteves de Souza
[Caio César Esteves de Souza é mestrando na área de Literatura Brasileira da FFLCH-USP, com projeto sobre Alvarenga Peixoto e a poesia árcade luso-brasileira. Também é membro da Modern Language Association (MLA)]

(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=504471 )

30 de maio de 2017

No último dia 29, os entusiastas da poesia tiveram uma ótima surpresa trazida à tona pelo blog lusitano Enfermaria6: a publicação de sete poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto, escritor cuiabano já conhecido entre nós por suas traduções de Bachmann e Brecht. Sete poemas que exigem de seu leitor sete, oito ou nove releituras pelo fascínio que o fino trabalho com a linguagem gera naqueles que se dispõem a apreciá-lo.

Os poemas são independentes, como é da natureza de todo poema, ainda que os poetas por vezes desejem que não o sejam; no entanto, estão juntos sob um mesmo título – Sete poemas – que, embora genérico, sugere algumas possibilidades de interpretação do conjunto. Dois me parecem ser os assuntos desses poemas: o tempo e a dissolução. O primeiro texto – “Poema do amado para seu amado” – é um belo exemplo da capacidade que a poesia tem de domar a elasticidade do tempo. Um instante com o amado cria uma nova chave de interpretação do mundo, ressignificando de pedras a astros, em movimento pendular entre noite e dia, silêncio e voz. O poema se encerra com chave-de-ouro, se ainda nos é permitido utilizar essa expressão, com a aguda metáfora do corpo daquele que ama – o próprio enunciador – como eclipse violento, representando em dois versos a mistura de sensações que levou inúmeros poetas lusófonos a derramar rios de tinta desde o fogo que não se vê de Camões.

O segundo e o terceiro poemas – “Canto de Dissolução” e “Se questo è un uomo” – apresentam o tempo como a sepultura última e o arauto do fim inevitável. O “Canto de Dissolução” apresenta uma interessante tensão interna, por ser composto por versos e estrofes regulares e bem martelados ao passo em que veicula uma ideia que se desmancha quando o leitor tenta tocá-la. Essa tensão explode, enfim, na última quadra, dissolvendo-a em dois dísticos que destroem a expectativa de superação da morte anunciada. O terceiro poema, por sua vez, expõe a efemeridade da vida humana e a associa à radical negação de um propósito para a nossa existência: melhor seria ter a Criação sido gasta com pedras rios, prados, bichos, que com homens, que nascem para morrer.

Os sete poemas são então cruzados pelo Rio Lete, que dá nome ao texto que divide o conjunto – “O último poema ou Rio Lete” – de maneira nem um pouco leviana. Esse poema parece expressar o desejo por uma trégua na luta com o tempo; desejo esse que só seria possível se acompanhado pelo mais absoluto esquecimento. O mergulho no Lete é a atitude do afogado que tenta tomar um último fôlego antes de se resignar à sua absoluta incapacidade de se salvar. Não há fuga possível do tempo.

Os dois poemas que se seguem demonstram uma guinada na atitude do poeta. Não sendo possível fugir do tempo, é preciso enfrentá-lo. O quinto poema, sem título, questiona se é lícito ao poeta dedicar-se ao exercício autorreflexivo enquanto a barbárie no país coloca fim à vida – e à possibilidade de vidas – de várias pessoas, concedendo a uma bala o poder de anular o tempo. O sexto, igualmente sem título, demonstra a perplexidade de um “alguém num apartamento de classe média-alta” – segundo nos parece, o próprio enunciador – ao observar a radical divisão (ideológica mas, também, de classe) do país. O poema projeta o tempo presente em uma natureza microscópica de partículas que se agrupam “na dança do ir sendo” e multiplicam tudo o que existiu, existe, existirá ou poderá vir a existir de maneira pródiga. Todos esses elementos, que despencam do colo do tempo, “fulminam” o alguém já mencionado, e dessa fulminação surge o poema.
A circunstância da Pec55 e a perenidade da barbárie no país se apresentam, assim, como dados do tempo com os quais o poeta tenta lidar, mas não consegue. As palavras conseguem dar forma a sentimentos e desejos, mas são incapazes de torná-los efetivos no mundo que circunda o discurso poético. Todas as palavras, os sentimentos e os desejos se mostram inúteis para lidar com o tempo presente. Dessa constatação parece surgir o último poema, que volta a ter um título – “Inútil” –, rompendo com a breve tentativa de enfrentamento dos dois anteriores. Tudo se mostra “inútil soberanamente inútil”.

Assim, Matheus Guménin Barreto deixa seu leitor sem alento, face a face com seu tempo, na inconfortável, mas necessária posição de responder ao que se lhe apresenta. Seus poemas são construídos com artifícios sutis, que trabalham a forma de maneira minuciosa e delicada, para que não sejam notados. Os versos são fluidos, recheados de imagens simples e pontuados por algumas que fogem totalmente da mediania, conduzindo o leitor por um caminho equidistante do tédio da simplicidade exagerada e da afetação inerente a qualquer experimentação vanguardista nos tempos atuais. Os poemas, individuais, têm coerência em conjunto e melhoram a cada releitura, como é natural que aconteça com textos dessa qualidade. Leitura prazerosa e instrutiva, frutos de uma (po)ética consciente de si e de seu tempo, os Sete Poemas de Matheus Guménin Barreto colocam seu autor no mapa dos poetas contemporâneos que merecem nossa atenção.

*

Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Brasil. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017). Publica pela Editora 7Letras (RJ) em agosto de 2017 seu livro de poemas A máquina de carregar nadas.

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)

e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

SE QUESTO È UN UOMO

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

*

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

*

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
é que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe, de um pai, de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

Sete poemas de Matheus Guménin Barreto – Enfermaria 6 / Portugal – 29.5.2017

(Fonte: https://enfermaria6.squarespace.com/blog/2017/5/29/b8aml0efedkr29ew7buu7891sybr03 )

Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Brasil. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017). Publica seu livro de poemas no segundo semestre de 2017 pela editora 7Letras.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”

– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

 


 

CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

 


 

SE QUESTO È UN UOMO
Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

 


 

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE
A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

 


 

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
é que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe, de um pai, de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

 


 

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

 


 

INÚTIL
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio
Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

TV de Quinta(L) entrevista Matheus Guménin Barreto – 17.3.2017

*por Carol Marimon/Eduardo Ferreira/João Fincatto/Marcelo Almeida

(Fonte: http://www.cidadaocultura.com.br/tv-de-quintal-entrevista-matheus-gumenin-barreto/)

Vídeo no link acima.

———-

7 POEMAS DE MATHEUS GUMÉNIN BARRETO

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

SE QUESTO È UN UOMO

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

*

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

TUDO ESTÁ POUSADO NOS OBJETOS

Tudo está pousado
já nos objetos.
Batendo pulsando leve
tudo está já nas coisas
à espera do toque
um só
que o abra em flor
e estrume.
A pedra o cão o pássaro
o carro a moto o prédio
[olha olha agora]
tudo
já contém o que resultará
da matemática da poesia
equacionada por um toque.

*

PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”

para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

O dia em que conheci o poeta Matheus Guménin Barreto – 26.12.2016

*por Eduardo Ferreira

(Fonte: http://www.cidadaocultura.com.br/o-dia-em-que-conheci-o-poeta-matheus-gumenin-barreto/)

A primeira vez que ouvi falar do Matheus foi através das palavras de uma amiga de minhas filhas que frequentava bastante nossa casa, a Belquise. Ela dizia repetidas vezes: “Tio, você tem que conhecer meu irmão, Matheus, ele é poeta.” Meio desconfiado eu respondia: “Beleza, Belquise, qualquer hora a gente vai se conhecer.”

E o tempo foi passando, volta e meia ela repetia: “Tio, você precisa conhecer meu irmão poeta, o Matheus!”. Certo, Belquise, uma hora a gente vai se conhecer. “Ele publicou um livro!” ,” Ok, Bel, uma hora leio o livro dele, pode me trazer um exemplar?”

O tempo escorre aos nossos olhos como mel derramado, quem não lambeu, não prova mais, já passou. Pensava desconfiado desses poetas jovens que logo querem publicar. Daí, vejo Matheus na mídia. Daí, minha filha, Marianna Marimon, faz uma matéria sobre o trabalho dele. Daí, vejo textos dele nos jornais e a celebração de boas vindas ao jovem poeta. Apresentado como uma explosão de talento, reconhecido e indicado por mestres de literatura, de São Paulo, de Mato Grosso, do Brasil, está aí uma nova poesia que se impõe como das boas novidades na poesia brasileira contemporânea.

“Tio, meu irmão ganhou tal prêmio!” – Cadê o livro que você ficou de trazer, Belquise? Passaram-se alguns anos. Daí, agora, me convidaram para entrevista-lo para a TV de Quinta(L) do site Cidadão Cultura. Ok, vamos lá!

Matheus Guménin Barreto nasceu em Cuiabá, no início dos anos 90. Pai mineiro e mãe de São Paulo. Iniciou seus passos na literatura como leitor voraz, vivia com livros por todos os lados. Leu muito e lê muito, é um estudioso, faz mestrado na USP, tradutor, apaixonado pelas línguas (brinca com o alemão) e pela linguagem poética. De tudo que vi na imprensa acho um clichê o que os sites e jornais repetem à exaustão: “Matheus é o novo Drummond! João Cabral de Mello Neto! Matheus é não sei quem!!??”  Só não vejo ninguém falar do próprio Matheus. Discordo. Matheus é Matheus, é Guménin, é Barreto e ele só pode sê-lo por inteiro. Matheus é um só, com sua sensibilidade e conhecimento delirante. O garoto é bem precoce, falamos sobre a história da arte, da música, da literatura, dos esplendores que pipocam nessa Cuiabá contemporânea, e ele mostrando uma animação que me cativou. Não precisamos esperar as coisas acontecerem , se for esperar, sente-se, espere, ninguém pode saber se vai acontecer. Mas se você se levantar e se mexer, aí sim, você pode fazer as coisas acontecerem, é assim que as coisas acontecem, fazer, fazer mais! Nisso a gente concordou em cheio.

Provoco-o, cito Manoel de Barros e a poesia como um estado de ser da infância da linguagem, ele pega o gancho e vai embora, é preciso dar vazão ao lado infantil, no sentido da instintividade como componente da criação, mas ele é exigente e depois considera e reconsidera, adentra o mundo da racionalidade, trabalha e trabalha e trabalha como um ourives esculpindo joias. É preciso suar, é preciso esforço, cita Ezra Pound. Falamos das múltiplas formas da beleza, não da beleza passiva, que não provoca movimentos, falamos da beleza que provoca, que causa estranheza, e que é preciso educar os sentidos e não descartar aquilo que rompe com os paradigmas, que trazem desconforto intelectual. Cito Stockhousen que foi execrado nas redes sociais ao elaborar frase polêmica e muito mal compreendida em sua dimensão trágica e poética ao exaltar a beleza da explosão de 11 de setembro que derrubou o Templo do capitalismo nos EUA, “a maior obra de arte já realizada”. Falamos da essencialidade da beleza, do caráter inútil da arte, Oscar Wilde, “Toda forma de arte é completamente inútil” e falamos, falamos mais que as bocas.

Fui ficando admirado pela dignidade que mora nesse menino, sua honestidade intelectual, sua segurança ao discorrer sobre a história da arte e da cultura, a consciência lúcida e o jeitão de poeta avoado. Cito Antonio Sodré, falamos de Ricardo Guilherme Dicke, ele fala das potências que estão explodindo por aqui e concordamos, Cuiabá está efervescendo, o caldeirão está em ebulição, isso vai ser visto, isso vai ser falado, tudo aqui está acontecendo de uma forma grandiosa, na música, na literatura, no teatro, no cinema, enfim, somos entusiastas e concordamos que estamos vivenciando um fenômeno cultural vulcânico (penso em um vulcão por debaixo de nossos pés alimentando o fogo do caldeirão cuiabano) com raras precedências.

Falamos da nova literatura brasileira, ele cita Ana Martins Marques, da guerrilha poética que deve ser uma constante para transpor as barreiras culturais, dos novíssimos escritores de Mato Grosso, como Santiago Santos, Odair Moraes, Wuldson Marcelo, das novas publicações, de como tem gente publicando e concordamos que isso é muito bom. Falamos de Wladimir Dias Pino, falamos de Roberto Victório e tantas coisas boas acontecendo por aqui que a gente só vai se dando conta falando, pensando, (se) debatendo, escrevendo sobre isso.

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

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SE QUESTO È UN UOMO

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

*

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

TUDO ESTÁ POUSADO NOS OBJETOS

Tudo está pousado
já nos objetos.
Batendo pulsando leve
tudo está já nas coisas
à espera do toque
um só
que o abra em flor
e estrume.
A pedra o cão o pássaro
o carro a moto o prédio
[olha olha agora]
tudo
já contém o que resultará
da matemática da poesia
equacionada por um toque.

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PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”

para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

Poeta cuiabano é comparado aos grandes e tem espírito universal – 25.11.2016

*por Rodivaldo Ribeiro

(Fonte: http://www.rdnews.com.br/final-de-semana/arte-e-cultura/poeta-cuiabano-e-comparado-aos-grandes-e-tem-espirito-universal/78085)

 

Escavar, perscrutar e investigar o abismo que todo ser humano carrega em si por meio da arte, é isso que artistas devem fazer, disse-me certa vez o poeta Matheus Guménin Barreto.

Disse-me também que talvez, por isso, sua principal matéria de trabalho fosse o homem, mas lembrou haver aí um problema, pois o homem enquanto ser é um tema que não delimita nada, posto que quase tudo pode entrar em tal categoria.

Assim, se apresentava a mim em entrevista um escritor – autor dos volumes de poesia O Cancioneiro dos Ventos (2011), De Volta para o Mundo (2012), É (2013) e de uma nova reunião pronta a ser lançada em 2017, ainda sem título – de voz e estilo bastante particulares, mas de endereço inscrito na montanha eterna formada pelas sílabas, palavras, fraseados, ritmo, conceitos e tudo quanto forma e celebra a língua portuguesa.

Hoje, com 24 anos, aos 19 já cometia coisas como A Borboleta Dourada II// Pra quê ela abriria as asas/ se logo mais não as teria?/ Seria como acostumar-se,/ ver, depois esquecer o dia.// Mas, será que entre a mala pronta/ e a desfeita, nada se apronta/ que valha o trabalho que dá?/ Será que, desfazendo a mala/ ou abrindo as asas pra voar,// não se ganha tudo que ao meio/ borbulha pleno, como um veio?

Mais ou menos três anos depois desse, enquanto se graduava em letras – português-alemão pela Universidade de São Paulo (USP), começava a obter o reconhecimento de gente como Nelson Luís Barbosa, doutor em Letras pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, e Marinaldo Custódio, escritor, professor e mestre em literatura brasileira pela Universidade Federal Fluminense.

Apesar de ser filho de migrantes (mãe paulista e pai mineiro), Matheus nasceu, foi educado e cresceu em Cuiabá. Pelo tipo de não-coincidência do destino, o poeta veio ao mundo no dia da reunificação das Alemanhas, três de outubro de 1992. A primeira vez que se ausentou de seu país foi em 2008, quando passou um mês estudando língua inglesa em Hastings (Inglaterra).

“Fiz graduação na USP, onde hoje desenvolvo minha dissertação de mestrado na área de tradução do alemão. Durante um ano da graduação, morei em Heidelberg (Alemanha) e lá cursei parte do bacharelado em Germanística e Anglística”, conta ao .

De espírito e coração universais como seus textos, tem sede por conhecer os horizontes e sendas de outras línguas.

Foi o que o levou a estudar, nos últimos anos, além de alemão e inglês, francês, chinês, espanhol e italiano. “Ainda quero aprender árabe, russo e ioruba”, diz o poeta, na maior simplicidade, como quem abotoa uma camisa.

Sobre seus primeiros livros, ele parece ter algumas reservas. Em uma pergunta dividida em três, sobre quantos livros havia lançado, desde quando e por que escrevia, ele respondeu:

“Por estranho que pareça, a primeira pergunta é a mais complicada, a segunda nem tanto. Publiquei até 2013 três livros, que resumo da seguinte maneira: um extremamente complicado, um extremamente simples e um terceiro que tentou ser a síntese dos dois, mas que, salvo uma dúzia de poemas, falhou na intenção”, argumenta.

Mas demonstra um rigor consigo mesmo típico de escritores de seu quilate. “Sinceramente, não acho que nenhum deles seja péssimo, mas também sei que nenhum deles é excepcional. Isso significa que não acho que eles valham realmente as horas gastas na leitura, mas também não há nada de desastroso neles”, diz, modesto.

Segue contando que, desde 2013, trabalha num livro já terminado desde setembro de 2015, quando voltou da Alemanha. Detalhe: tudo foi escrito à mão, como é de seu hábito. Esse volume foi estruturado a partir de “11 ou 12 cadernos de anotações, sendo que só digitei por volta de um terço dos poemas manuscritos”.

Ele resolveu então imprimir uma primeira versão, trancada numa gaveta por seis meses. Depois desse período, releu os textos e cortou o número de poemas do livro mais ou menos pela metade.

Trabalhou mais um pouco nessa versão, reescreveu versos ou estrofes, cortou ainda um ou outro poema até que o manuscrito parecesse não ter mais nenhum texto sobrando, nenhum texto que não precisasse estar ali. “Esse é o livro que tenho pronto agora, e depois de levá-lo a meia dúzia de amigos, a uma professora de literatura da USP e a uma grande escritora de Mato Grosso [nota da reportagem: Lucinda Persona], decidi publicá-lo”.

Em meio às opções de editoras disponíveis, ele acaba por revelar muito de si comum a vários escritores –– a renitência com a própria obra. “Esse livro é a única coisa que já criei que me deu a estranha sensação de estar (o livro) à altura dos autores que eu mais admiro (e isso é muito, sabendo que sou meu pior inimigo nessas avaliações). Enfim, é possível que no final do ano que vem ou início do outro o livro esteja nas livrarias”.

Algo só dele, pois para os dois professores especialistas em literatura em língua portuguesa em duas áreas de estudo diferentes mas não tão distintas assim, dada a matéria-prima, Matheus é nada menos que equiparável a Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto.

Para Nelson Luís Barbosa, Matheus “já desponta na literatura brasileira como um poeta pronto, um poeta que conhece muito bem seu ofício e que sabe, como poucos hoje, em meio a todos os ruídos contemporâneos, reunir/juntar rumores, sons e palavras, sentimentos e sentidos que interessam à literatura, limpando-os, polindo-os, transmutando-os em verdadeiros poemas, de verdadeira poesia”, escreveu o professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

Nas palavras de Marinaldo Custódio, “já se falou que a obra drummondiana narra preferencialmente a trajetória do homem sobre a Terra. Por outro lado, a ele já se referiram como poeta do indivíduo desajustado, do cotidiano, da existência e do fazer poesia. E que fez poesia tratando de temas tipicamente brasileiros porém com uma pitada de inegável metafísica, portanto universal, remetendo à nossa condição de humanos, à alma humana. É precisamente isto que vejo despontar na poesia do Matheus”, vaticina o escritor.

Um trabalho ao qual Matheus se dedica com esmero sincero desde os 14 anos. O primeiro poema, conta, surgiu depois dele ler O Canto do Guerreiro,  de Gonçalves Dias, e ficar hipnotizado pelo ritmo do texto. E isso apesar de Gonçalves Dias não ser dos seus autores favoritos. “O que faz sentido é o fato de o ritmo do poema ter me chamado atenção: tenho para mim que o ritmo é o aspecto mais importante da poesia, talvez até a coisa que faça a poesia ser poesia”.

“A poesia é para mim
algo como a ferramenta
com a qual posso cavar a
terra, cavar o homem”

Sobre o motivo de escrever o talvez mais negligenciado, na contemporaneidade, dos gêneros literários, ele faz algum charme, mas responde. Ele diz que é uma pergunta tão complicada que acaba ficando simples. “Explico: é tão complicada que já nos faz desistir logo de cara de dar uma resposta completa, tira o peso d’A Resposta Correta dos nossos ombros. Sempre me perguntei: Por que escrevo? E por que escrevo logo poesia? Escrevo para conhecer, para saber, notar. A poesia é para mim algo como a ferramenta com a qual posso cavar a terra, cavar o homem. A poesia por si só não se justifica, pelo menos não para mim (e algumas pessoas podem viver sem se justificarem; eu, não); a poesia é o meio através do qual quero chegar a outro ponto, ao susto da realidade, ao susto daquilo que o homem é”.

E continua dizendo que poesia só se justifica, para ele, como ferramenta. “Acredito quase que com religiosidade (eu, que não tenho religião) que algumas regiões da natureza humana só podem ser acessadas através da arte — tanto pelo criador quanto pelo leitor/ouvinte/espectador/etc. A arte não é descanso, desabafo. A arte é movimento e cansaço constante, enfrentamento. Só acredito na arte que de alguma forma nos puxa o tapete, nos faz notar com surpresa algo em nós, nos outros, nas coisas, nos lugares. Por isso escrevo”.

Não é necessário nenhum grande fecho da reportagem depois do que foi dito, mas ele fez mais, ao presentear os leitores com nada menos que sete poemas inéditos. É só aproveitar.

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

SE QUESTO È UN UOMO

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

*

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

TUDO ESTÁ POUSADO NOS OBJETOS

Tudo está pousado
já nos objetos.
Batendo pulsando leve
tudo está já nas coisas
à espera do toque
um só
que o abra em flor
e estrume.
A pedra o cão o pássaro
o carro a moto o prédio
[olha olha agora]
tudo
já contém o que resultará
da matemática da poesia
equacionada por um toque.

*

PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”

para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.

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INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

“No legado de Drummond” – Prof. Marinaldo Custódio

*por Prof. Marinaldo Custódio

“Leitura de poemas do jovem Matheus Guménin Barreto faz lembrar o grande poeta mineiro, por sua poética reflexiva abordando as ‘profundezas’”

Sempre achei que fazer crítica literária é coisa demais de demasiado grande para mim. Inclusive na universidade, minhas maiores, excelentes notas nunca foram em Teoria da Literatura tampouco em Linguística. Sempre me dei bem em Literatura propriamente dita, pela fruição do texto literário em si, ou em Língua Portuguesa, pela curtição de poder brincar com o texto em seus multifacetados aspectos: linguístico, semiótico, social, cultural, comunicativo enfim.

Por tudo isso me é tão difícil falar de um jovem poeta, e de sua obra, como me ocorre aqui ao abordar a poesia de Matheus Guménin Barreto. Se me animei a fazê-lo, é óbvio que eu tenho cá minhas razões. E elas se fundam, principalmente, num insight que tive ao ler os primeiros poemas dele, há pouco tempo, quando me ocorreu que ali estava um poeta singularíssimo, “de primeira água” (expressão preferida de outro grande poeta, Ivens Cuiabano Scaff). E que, talvez acima de tudo, porque sua poética (profunda, reflexiva, filosófica) me faz lembrar em muito a de Carlos Drummond de Andrade, aquele a quem chamo, à moda do que fizera Caetano Veloso, simplesmente de “o maior poeta brasileiro de todos os tempos”. (Sei perfeitamente que a academia recomenda muita calma, e fleuma, nessa hora, visto ser demasiado temerário afirmar que um é maior que outro e, ainda mais, que um é o maior de todos – mas o faço, a despeito de tudo).

Não analiso versos; já disse que não sei fazer isto, pois nunca fui bom em Teoria da Literatura. Vejo o conjunto, sinto a totalidade da coisa, o impacto sensorial e emotivo que a coisa causou em mim. Seria, pois, a chamada “análise do conteúdo” isto que a gente costuma fazer, quando na realidade a academia só respeita a “análise da forma”, e até compreendo que tem de ser assim mesmo, a academia está certa neste quesito, do ponto de vista dela, do cânone e coisa e tal.

Mas vamos nós com a nossa prosa. Em matéria especial que publicou na revista ‘Veja’ (“E agora, poesia?”, em 26 de agosto de 1987), logo depois da morte do grande poeta, o jornalista e também escritor Mário Sérgio Conti diz que a poética drummondiana, muito mais que lírica, é de uma profundeza filosófica, existencial por excelência, transitando por entre “o sono rancoroso dos minérios” e aquilo que “pensado foi e logo atinge distância superior ao pensamento”.

E já se falou que a obra drummondiana narra preferencialmente a trajetória do homem sobre a Terra. Por outro lado, a ele já se referiram como “poeta do indivíduo desajustado, do cotidiano, da existência e do fazer poesia”. E que fez poesia tratando de temas tipicamente brasileiros porém com uma pitada de inegável metafísica, portanto universal, remetendo à nossa condição de humanos, à alma humana.

É precisamente isto que vejo despontar na poesia do Matheus. Afirmação temerária, isto eu sei muito bem que é. Mas ouso! O próprio Drummond, sempre tão cioso quanto ao caráter sagrado do fazer poesia, que até pediu num poema “Ah, não me tragam originais para ler, para corrigir, para louvar”, até ele, vejam só, em toda a sua grandeza e olho perspicaz, não louvou também a poesia de um Dante Milano? – “um poeta de extraordinária qualidade”, disse o mineiro certa vez ao ler poemas do colega carioca.

Então, de minha parte, está dito.

É isto.

O canto (MATHEUS GUMÉNIN BARRETO)

[Quisera não nascer homem
ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é nunca ter sido]

Olhai o galho à janela.
É duro, e de morrer não nasce
e sem nascer e sem morrer deita
[à eternidade
a face.

Olha o gato esquecido de nascer.
Olha o cão olha o peixe olha a ara-
nha.
Esquecidos de nascer
[nascem
e perduram no tempo comprido.

[Quisera não nascer homem
ou, melhor, não ter nascido,
se ser é se perder sempre
e nascer é não ter existido]

Confissão (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro – vinha azul e doido –
que se esfacelou na asa do avião.

Canção bêbeda (DANTE MILANO)

Estou bêbedo de tristeza,
De doçura, de incerteza,
Estou bêbedo de ilusão,
Estou bêbedo, estou bêbedo,
Bêbedo de cair no chão.

Os que me virem caído
Pensarão que estou ferido.
Alguém dirá: “Foi suicídio!”
“É um bêbedo!” outros dirão.

E ficarei estirado,
Bêbedo, desfigurado.

Talvez eu seja arrastado
Pelas ruas, empurrado,
Jogado numa prisão.

Ninguém perdoa o meu sonho,

Riem da minha tristeza,

Bêbedo, bêbedo, bêbedo,

Em mim, humilhada a glória,
Escarnecida a poesia,

Rasgado o sonho, a ilusão
Sumindo, a emoção doendo.

E ficarei atirado,
Bêbedo, desfigurado.

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