“Dez poemas de Matheus Guménin Barreto” – Revista Germina – 22.9.2018

(Fonte: http://www.germinaliteratura.com.br/2018/matheus_gumenin_barreto.htm )

PRIMEIRO

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

UMA ARQUITETURA DA CONCHA
“Para aquele que deu a concha”

1.
Que esta concha entre os dedos recolha
e decante em silêncios a voz
agitada em trovões – mar o crânio –,
que a decante e que a anule depois.

2.
Que recolha entre os vórtices secos
todo o eco dos mares confusos,
que o recolha e decante em silêncios
e apascente o traçado dos fusos.

3.
Que esta concha entre os dedos anule
o que dentro de alguém é loucura.
Que ela guarde, meu Deus, da loucura,
que é o que acha quem muito procura.

4.
Que estas conchas recolham do fundo
já sem fundo das curvas do mar
o olhar tão cansado do homem

– e o devolvam depois, pra guiar.

*

MANHÃ

a –

Notícias da manhã
informam que o tempo, de
fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –

O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –

A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)

e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

POEMA AMARELO

a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

*

POEMA EXTREMO

Pega na mão a pedra
pega na mão a cadeira
pega na mão o pão
mesa escada copo d’água
pega
puxa pro lado
e descobre ali

a poesia.

*

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis

.

e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

*

O LÁPIS DESCANSADO

O lápis a descansar
no colo da mesa branca.
Que arquiteturas, que riscos,
que abismos, que céu se tranca

ao longo do lápis longo
parado, imóvel, preto?
O anúncio de qualquer coisa
entre a mente e o peito.

Que coisas já guarda o lápis?
Guarda o que vem-lhe através?
Só guarda o suave das mãos,
ou o áspero dos pés?

O pé guarda acaso as linhas
das geografias e mapas?
Guarda. E, em as guardando todas:
o que és, de ti não escapa.

Sabe o que o lápis encerra
em si, na madeira morta?
Sabe, e mais sabe o lápis
aquilo que o homem ignora.

O que é que o lápis contém
do que ainda nem foi feito?
O anúncio de qualquer coisa
entre a mente e o peito.

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

“Sete poemas de Matheus Guménin Barreto” – Revista A Bacana / Portugal – 17.9.2018

(Fonte: http://www.abacana.com/oficial/sete-poemas-de-matheus-gumenin-barreto )

 

Primeiro

O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

*

Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo

– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.

*

o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e o braço e as mãos
tremulargênteas
e o rosto toca e o sexo
quente e afiado
o amado que toca os pulsos mornos
de seu amado
e sabe de repente o que é um ensolarado riso e
a noite antiquíssima que o olha
de volta.

*

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

*

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

mãos que levantaram-se e caíram
no fluir inadiável do tempo
e dia por dia ano por ano escavaram o tempo
até aqui chegarem
a estas minhas mãos morenas sob este céu transparente
sobre este teclado

mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas

o trabalho comum que é o tempo
esta conta de vidro
mão por mão gesto por gesto
feito e abandonado como as ondas consecutivas na praia
como o fio que se tece só em parte
tempo

– minhas mãos aquelas também
sob estas.

*

Canto de dissolução

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

“Dez poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista InComunidade / Portugal – 5.2018

(Fonte: http://www.incomunidade.com/v68/art_bl.php?art=192 )

 

POESIA

Ou fruto apenas entre os dentes
prestes prestes prestes a romper-se.

*

POEMA AMARELO

a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

*

EQUAÇÕES MATEMÁTICAS

1)
na curva, na nuance encontrei Deus
no limpo da linha reta o perdi

2)
quando se escuta o marulho da noite
e as coisas ganham contorno insuspeito
a geometria do silêncio aflora
e a vida vale

3)
o silêncio anterior
ao construto da fala no lábio

4)
não diz
se sabe que o dito não condiz
com o que se queria dito
e,
dito,
é outro dito no ouvido que o apascenta.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu
cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes
desesperados, 2007.

a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis

.

e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

*

MANHÃ

a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.

b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.

c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.

*

NESTE TEMPO

Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.

*

MISSA DE 7º DIA

A cama que criam absoluta
porque carregou ali quem morria
e, morto, tomou posse
[do que
[a cama é

– essa cama foi batida
[ao sol,
[refrescada, posta
[ao craquelado
[da luz
[de algum quintal

e perdeu seu morto
como quem perde um tostão.

*

PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”

para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.

*

PENSAR QUE DORMEM TODOS

pensar pensar
pensar que todos deitam por baixo
da sombra do sono,
que dormem todos pensar que
o assassino o belo o tímido o
sagaz o corrupto o
miserável o tranquilo
dormem dormem deitam por baixo da
rede do sono
e dormem

pensar
nos seus rostos à meia-luz
entre os panos e o tear de silêncios
da noite
pensar
nessa estranha escura sem-querer
irmandade
entre os ——————–

pensar nos seus rostos
por baixo da sombra do sono
o peito respirando
a boca meio aberta
à meia-luz

pensar que dormem todos
irmãos