Quatro poemas de Matheus Guménin Barreto – Jornal Rascunho – 4.2021

(Fonte: https://rascunho.com.br/ficcao-e-poesia/poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )


Matheus Guménin Barreto (1992) é poeta e tradutor mato-grossense, um dos editores da revista Ruído Manifesto. É autor dos livros A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020).



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as ondas roem a manhã:
limpa de morte: um osso




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Juízes, III, 22

as tripas de Eglon rodeiam o braço
de quem o fura as tripas gordura excrementos de Eglon tentam
ainda talvez proteger rei Eglon as
tripas de Eglon dançam para fora de sua barriga
e o por do sol nelas se reflete
delicado

a sala ensombrecida não detém
o amor difícil de Aod
e a tocha esquecida de acender não aponta não aponta
o crepúsculo oleoso aos pés do rei
Eglon

o amor sempre encontra seu caminho
e mãos que o tracem




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Josué, VI, 20

a muralha de Jericó dispersa pelo chão:

cada rosto que se vira
(sombra & fraga
fraga & sombra)
de Seu amor:

cada rosto que se volta
de Seu santíssimo amor
(o anoitecer é rosa e azul):

para longe
do urgente santíssimo amor
(ríctus)
do Deus cocainômano 
& só




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o brutal silêncio de Deus:

Seu amor medonho apodrecendo nas mãos

sem quem o colha
sob os ecos do pátio
(é sempre fim de tarde)




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“Como escreve Matheus Guménin Barreto” – Entrevista a José Nunes – 22.3.2021

(Fonte: https://comoeuescrevo.com/matheus-gumenin-barreto-2/ )

Como escreve Matheus Guménin Barreto

Matheus Guménin Barreto é poeta, editor na Ruído Manifesto e tradutor, autor de “A máquina de carregar nadas”, “Poemas em torno do chão & Primeiros poemas” e “Mesmo que seja noite”.

  • Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Não organizo. Há uns dois anos criei e mantenho uma rotina relativamente metódica de trabalho na tese de doutorado (de segunda a sexta, 7 ou 8 horas diárias, pequenas metas para cada dia, acordando [quase] sempre às 6h), mas realmente não tenho rotina de criação literária.

Posso contar nos dedos de uma só mão as vezes em que decidi de fato escrever um poema, em que tive uma ideia de texto e tentei escrevê-la (e sempre joguei fora antes de terminar). Eles simplesmente não deram certo, não consigo projetar poemas ou escrever a partir de ‘temas’ ou ‘ideias’. Acho que eram textos ‘bem-feitinhos’, minimamente defensáveis – mas não tinham fagulha (admitindo que os outros têm, né?). Enfim, então desisti de tentar, pelo menos por enquanto. Pode ser que daqui a 10 anos eu planeje todos os poemas, quem sabe? Cada um encontra seu caminho (e o altera constantemente). Alguns dos amigos e das amigas que mais admiro projetam quase todos os seus poemas/contos/romances e fazem trabalhos fantásticos. Eles conseguem, eu não consigo.

Os meus poemas surgem aleatoriamente, e de modo geral escrevo a primeira versão de uma sentada. Depois disso, aí sim passo vários meses reescrevendo, alterando, cortando de um jeito quase maníaco (aliás, quase nunca aumento os poemas, costumo só cortar e alterar mesmo).

Quanto aos livros, esses sim são projetados.

Depois que tenho um número bom de poemas, releio tudo e tento tirar um projeto dos próprios poemas. A ideia é que os poemas imponham o projeto, não eu (espero que isso não soe muito misticóide). Afinal, se eu escrevi aqueles poemas em um mesmo período, alguma lógica entre si eles devem ter. Meu trabalho ao montar um livro é descobrir qual é essa lógica, para que o livro não vire um amontoado de poemas (talvez daqui a 10 anos meus livros sejam amontoados de poemas, tudo é possível – mas not today).

Sobre a questão da aleatoriedade dos poemas e da sistematização dos livros, pensei agora o seguinte: acho que essa tensão se dá porque tento alcançar algum equilíbrio entre espontaneidade e cálculo, entre frescor e projeto.

Quanto ao número de projetos, normalmente só tenho um projeto literário por vez. Desde o início foi assim. Mas por algum motivo acabei acumulando hoje 3 livros de poemas em processo, um romance em processo e um livro de poemas já escrito e aguardando revisão final (depois que termino de projetar um livro, eu o guardo por 6 meses exatos e então corto/altero mais um pouco).

  • Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Acho que falei do planejamento na resposta anterior. Quanto à dificuldade para começar ou terminar um texto: eu acho tudo muito difícil, na verdade. Por isso não ‘decido’ escrever os poemas. Escrevo quando o poema lampeja na cabeça. Depois que o poema acontece por conta própria, aí sim as coisas ficam relativamente fáceis, porque o restante do trabalho consiste em alterar, cortar, repensar trechos. Quando não acho que as alterações tenham sido suficientes, quando não gosto do resultado, aí eu jogo fora o poema e espero o próximo.

  • Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?

Não sigo rotina (além do fato de começar a revisão de um livro 6 meses depois de finalizá-lo) e não preciso de um ambiente específico. Já escrevi poemas em ônibus lotados, sozinho em casa, em festas, tomando banho – enfim, o poema lampeja e eu anoto essa primeira versão. Também não preciso de papel, caneta ou celular especiais, escrevo onde der.

  • Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?

Não. Quando me sinto travado, espero. Como não planejo os poemas, todo poema poderia ser o último. Então escrevo quando o poema surge e, quando fico travado, torço para que o poema mais recente não tenha sido o último.

  • Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?

Publiquei três livros de poemas: “A máquina de carregar nadas” (7Letras, 2017), “Poemas em torno do chão & Primeiros poemas” (Carlini & Caniato, 2018) e “Mesmo que seja noite” (Corsário-Satã, 2020). Eu acho que todos eles deram trabalho e todos foram fáceis – é um processo estranho, que não entendo muito bem e que me esforço para continuar sem entender.

Explico: por mais que o/a autor/a leia, estude, veja o que outras pessoas escrevem, se dedique mesmo à sua escrita, enfim, acho que é necessário manter uma zona nebulosa, meio noturna, e não invadir essa área com as ferramentas do conhecimento. Dessa área nebulosa e sem controle saem as melhores características de qualquer artista.

Quanto a qual trabalho me dá mais orgulho, essa resposta depende do dia da pergunta. Normalmente me sinto insatisfeito com tudo o que faço, parece que corro atrás de alguma coisa que me foge, mas de vez em quando sinto sim algum orgulho de poemas ou livros específicos – no dia seguinte, tudo muda. Na semana passada assisti a uma entrevista da compositora contemporânea Joan Tower (uma das artistas que mais admiro hoje – ouçam o trabalho da Tower, gente!) e ela comentou uma coisa interessante sobre as próprias peças: que a opinião sobre cada trabalho depende do dia da semana. Na segunda ela odeia, na terça acha que é até que ok, na quarta adora, na quinta odeia, e assim por diante. Acontece o mesmo comigo.

  • Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?

Não escolho os temas, os poemas acontecem/lampejam. E não sei se mantenho um leitor ideal em mente ou não – às vezes acho que sim, às vezes acho que não. Realmente não sei. Vou escrevendo e esperando que aquilo interesse pelo menos meia dúzia de pessoas – que pelo menos meia dúzia de pessoas sejam mobilizadas/movidas pelos poemas, que elas terminem a leitura, olhem ao redor e vejam o quarto, o ônibus ou a rua pelo menos um milímetro deslocados em relação a antes. Esse milímetro é um mundo inteiro.

  • Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?

Normalmente depois de pelo menos alguns meses e algumas alterações. Nunca mostro ou posto algo que acabei de escrever. Quanto mais recente o poema, mais inseguro eu me sinto para mostrá-lo a alguém. Quando o poema é ainda inédito em livro, tento esperar uns 3 meses antes de publicar em revistas ou mostrar a alguns amigos mais próximos – normalmente o Marcelo Labes, a Sofia Ferrés, o Caio Augusto Leite. Já tomei alguns cafés com a Lucinda Nogueira Persona para mexer em poemas recentes, e esse ano andei mexendo também em alguns poemas com os queridos Ismar Tirelli Neto e Hugo Lorenzetti Neto.

  • Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?

Não sei se esse momento existiu. Fui escrevendo e a coisa foi criando forma. Eu me lembro, por exemplo, de brincar de ‘escrever histórias’ com os amigos aos 10, 11, 12, 13 anos: cada um escrevia um pedaço da história, que o amigo completava, depois outro amigo, e assim por diante, até formar uma narrativa de muitas vozes. Tem louco para tudo.

Acho que tive amigos/as que me incentivaram muito e que eu também incentivava, não posso reclamar disso. Acho até que me faltou o contrário: alguém que fosse mais rígido e me ensinasse a cortar o texto, a ver o texto de um modo crítico, a duvidar do texto. Acabei aprendendo isso só mais tarde, e hoje duvido de tudo o que escrevo. Se a dúvida tivesse nascido mais cedo, eu teria deixado de escrever muita besteira, muita groselha. Então se eu pudesse dizer hoje algo ao Matheus de 15 anos, diria: “aprenda a duvidar do seu texto”.

  • Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Acho que gosto do meu caminho na escrita, e percebo hoje que ele nasceu de um movimento duplo: o de me interessar por tudo o que os/as colegas escrevem, mas de não me encaixar muito nos grupos. Acho que eu sempre fiquei um pouco deslocado nos grupos de escritores/as, sempre escrevi um pouco errado de acordo com as regras implícitas de cada grupo. Ao mesmo tempo, tento ler os trabalhos desses colegas todos, me manter aberto a essas várias propostas do/no contemporâneo para absorver o que me faz sentido em cada uma – principalmente dos/as autores/as que menos se parecem comigo, dos/as mais distantes.

Entre autores/as mais experimentais, não sou experimental o suficiente; entre autores/as do metro fixo, meu verso não é fixo o suficiente; entre autores/as de linguagem quotidiana, tenho uma linguagem rara demais; entre os autores/as de linguagem excêntrica, tenho uma linguagem habitual demais. Sempre falta ou sobra alguma coisa. Gosto muito disso e tento me manter desajustado nesses grupos, mas sem ignorar o que esses/as colegas estão fazendo (nem o que os/as colegas já mortos/as fizeram – nesse século ou nos anteriores).

Acho que muitas pessoas acabam lendo só os/as autores/as que se parecem com elas, os/as que têm projetos afins, e aí as vozes vão se fundindo, perdendo as particularidades. Como naquelas famílias em que os primos só se casam entre si e depois de algumas gerações todo mundo tem mais ou menos a mesma cara. Imagino que isso traga alguma segurança ou confirmação, não sei, mas nesse caso a segurança é perigosa.

Tento me incomodar sempre, manter um desconforto sempre vivo ao ler gente que coloca os meus projetos em dúvida, que puxa o meu tapete. Acho que esse incômodo mantém a linguagem em movimento.

  • Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?

Entre os/as brasileiros/as, provavelmente “Três porcos” do Marcelo Labes, “Um corpo negro” da Lubi Prates, “A mulher submersa” da Marceli Becker, “Madona dos Páramos” do Ricardo Guilherme Dicke, “Tempo comum” da Lucinda Nogueira Persona, “Magma” da Olga Savary. Mas ando recomendando muitos/as compositores/as também: acima de tudo, as contemporâneas Joan Tower e Sofia Gubaidulina. Além delas, os mortos: Olivier Messiaen, o manauense Claudio Santoro, o bom e velho Stravinsky.

(Aliás, sei que não estava nas suas perguntas, mas é sempre bom registrar: hoje, 21 de março de 2021, o genocida ainda é presidente. E ainda merece tribunal internacional.)