Um poema de Matheus Guménin Barreto – Antologia “notícias do intervalo” – 17.4.2020

(Fonte: http://ruidomanifesto.org/noticias-do-intervalo-antologia-poetica/ )

notícias do intervalo é uma antologia organizada pelo poeta Felipe André Silva com poemas sobre/a partir da pandemia mundial.

“falar para não estar tão só, quando estar só parece ser o pior. falar da maneira que conseguimos, que conhecemos. talvez uma equação simples. e ainda assim topamos com o velho questionamento: poesia, numa hora dessas? sim, poesia, falar, em todas as horas. falar sobre o além da janela, sobre a secura das ruas, sobre traumas que não respeitam isolamento, sobre dívidas a pagar assim que o toque de recolher for suspenso, sobre estar dentro de uma caixa azul. mesmo durante o intervalo as notícias continuam correndo.”

Autores participantes: Antônio LaCarne, Caetano Sousa Romão, Caio Augusto Leite, Divanize Carbonieri, Enoo Miranda, Felipe André Silva, Felipe Ribeiro, Frederico Klumb, Germano Rabello, Jorge Miranda, João Pedro Faro, Larissa Veloso, Leonardo A. Amorim, Leonardo Marona, Luana Claro, Lucas Litrento, Matheus Guménin Barreto, Pedro Mohallem, Pedro Queiroz, Raian Oliveira, Sofia Ferrés, Stefano Calgaro, Tarso De Melo, Telma Scherer e Thiago Ponce De Moraes.

 
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Elegia pequeno-burguesa (Matheus Guménin Barreto)

Há a hora em que se sussurra –

(sussurra o vento na sombra
de uns galhos cheirando a urina,
a urina e jasmim) e alguém
sussurra do desfazer-se,
sussurra do desmontar-se
no estático entardecer.
Entre contas, dentifrícios,
livros, restos de uns amores,
restos de um tempo macio
que teima em se desmontar,
sussurra alguém entre posses,
sem posse mais de seu rosto,
um burguês atordoado
em sombras :: no entardecer.

Notícias de outras ilhas: Matheus Guménin Barreto – Revista Cult – 8.4.2020

(Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/matheus-gumenin-barreto-ilhas/ )

Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá) é poeta, tradutor e doutorando na USP e na Universidade de Leipzig. Publicou A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e lança livro novo em 2020.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena -, indica a leitura de poemas de Marcelo Labes, da Lubi Prates e Diogo Cardoso. A curadoria da seção é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

Já não fosse a própria pandemia uma coisa terrível, ainda temos de assistir diariamente aos crimes via twitter e via pronunciamento oficial do saco de lixo que veste hoje a faixa presidencial.

Em meio a esse combo desastroso, algumas pessoas andaram me fazendo companhia – e acho que devo a elas minha sanidade mental nessas últimas semanas.

Eichendorff, Búnin, Marcelo Labes, Lubi Prates e Diogo Cardoso são os autores que me acompanham; Joan Tower e Sofia Gubaidulina são as compositoras.

Do Eichendorff eu li o divertidíssimo Aus dem Leben eines Taugenichts (saiu no Brasil como Da vida de um imprestável [Editora Oficina Raquel, tradução de Fernando Miranda]), que acompanha do jeito mais nonsense possível um “imprestável” ou “zero à esquerda” que cai na estrada levando só seu violino; do Búnin, que recebeu em 1933 o Nobel, estou lendo agora O processo do tenente Ieláguin (Editora 34, tradução de Boris Schnaiderman).

Além disso (ou junto com isso) me acompanham aqui na ilha os CDs Black Topaz da Joan Tower (com o quarteto de cordas “the muir”) e Offertorium da Sofia Gubaidulina (com Gidon Kremer e Dutoit), duas compositoras vivíssimas e muito potentes.

Os poemas do Marcelo Labes, da Lubi Prates e do Diogo Cardoso eu fico lendo e relendo eternamente. É incrível como eles – cada um a seu modo – dão à nossa língua uma voltagem assombrosa: ler esses autores é se assustar com a língua que se tem (ou que se pensava que se tinha).

Aqui um poema de cada um (e antes de terminar: viva o sus!):

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mare nostrum – parte IV (Marcelo Labes)

primeira tentativa – autoexplicação:

quando floriano peixoto mandou tomar
a ilha mandou fuzilar inimigos mandou
batizar a ilha em sua homenagem

os federalistas degoladores morreram
de tiro qual ironia matar de tiro quem
sangrou centenas no golpe de faca

segunda tentativa – autoexpiação:

aprender a nadar para alcançar
sair da ilha e beber o mar

***

não foi um cruzeiro (Lubi Prates)

meu nome e
minha língua

meus documentos e
minha direção

meu turbante e
minhas rezas

minha memória de
comidas e tambores

esqueci no navio
que me cruzou
o Atlântico.

***

A língua nômade (Diogo Cardoso)

se eu falasse a língua dos atravessadores de desertos
se eu falasse toda a areia caída de seus ombros,
se eu falasse ainda a paisagem árida de seus dentes
a paisagem pura dos animais esfaimados
se eu falasse os animais assentados na saliva seca
se eu falasse de dentro da sede dos que morrem sob a lua
se eu falasse os dias habitados na pele da serpente
encerrados nas urnas que guardam as faltas todas
se eu falasse as estrelas pendidas nas pontas dos dedos
se eu falasse o sangue sustentado na costela ausente
se eu falasse a mulher o homem a criança e o centro da adaga
se eu falasse as falésias mudas pendidas na garganta
se eu falasse a voz das flores de sua saia
fazendo ventos em meu desejo
se eu falasse voz corpo o que quer que seja
se eu falasse a delicadeza deitada no mês de julho
se eu falasse as flores cobertas de fogo
se eu falasse os acentos inaugurais de um sorriso
se eu falasse o nome guardado em mim esta noite
se eu falasse
se eu falasse a verdadeira letra que iniciasse o verbo
se eu falasse os números quebrados em teus lábios rotos
se eu falasse o sim o não o nunca o agora
se eu falasse então isso assim lá onde
se eu falasse quando
se eu falasse quente o segredo da sopa
se eu falasse a mágoa acesa nos joelhos
se eu falasse as pedras que choram o chão
se eu falasse durma a grama de seu azul turbante
se eu falasse irilisili
se eu falasse anijiriraã
pisiriliá irujna keresê
khraô sirilitili keresaranaã
se eu falasse

se eu falasse.

Três poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista Posfácio – 31.3.2020

(Fonte: https://www.posfacio.com.br/2020/03/31/poesia-tres-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

Hoje publicamos três poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto (1992, Cuiabá), poeta, tradutor e doutorando na Universidade de São Paulo e na Universidade de Leipzig. É autor de A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Lança livro novo neste ano.

***

Patina patina em círculos no gelo
patina no gelo
e caem Tomahawk sobre o sono morno da Síria
sobre o solo frio da Ucrânia cai
o general iraniano cai
patina patina no gelo
caem na carne morna dos arariboia as balas as as
patina
patina patina no gelo patina em círculos em círculos
os pés como os do enforcado os pés
patina enquanto caem as pedras sobre a adúltera

Patina patina em círculos no gelo
veste os sapatos, paga 6,30 euros, dorme tranquilo.

***

A mão que arde no arbusto
é a mesma
que arde no sexo do amado é a mesma
que arde na areia e na espuma
a mão que arde no sexo do amado
é a mesma que faz a cama com vagar
entre paredes altas
mais alto o ardor branco da cama feita, apaziguada.
A mão que arde no branco da cama
é a mesma que limpa fezes e a mesma posta contra a luz de relâmpagos
à noite
a mesma que abre o pão é a mão a mesma.

Em cada coisa o vagar, em cada coisa o furor mudo.

***

Descasca das mãos o tempo
(cai mudo azul-escuro),
esfarelado o tempo do que foi e já nem mais
tenta. Descascam dos olhos umas tardes vermelhas
de maio. Descasca da boca um quase beijo
adiado e já não dado
mais. Descasca do corpo o corpo,
rastro sujo do que era, promessa
só feita.