“Mesmo que seja noite: a poesia de Matheus Guménin Barreto” – Entrevista a Marianna Marimon (Cidadão Cultura) – 18.7.2020

(Fonte: https://www.cidadaocultura.com.br/mesmo-que-seja-noite-a-poesia-matheus-gumenin-barreto/ )

 

Mesmo que seja noite: a poesia de Matheus Guménin Barreto

*por Marianna Marimon

 

Escutei as palavras de Matheus Guménin Barreto enquanto tomava o meu café quente. Do outro lado da tela, o escritor dividia comigo a trajetória para colocar no mundo seu mais novo livro Mesmo que seja noite. Dividíamos palavras, projetos, sonhos, desejos, saudades, e uma xícara de café preto. Ficamos nesse ritual durante dias, trocando e compartilhando literatura, poesia, afetos. Esse papo tão leve e potente se mesclou com nossas lembranças sobre aquilo que nos une. Fins de tardes no SESC Arsenal, peças de teatro, amizades, pessoas em comum, e a triste notícia da perda de Marília Beatriz, que cortou nossos corações. Naquele momento, o que dissemos um ao outro, como que fazendo promessas em seu nome, foi que temos uma certeza: é preciso continuar e levar a arte sempre para frente. É o que ela gostaria e é esse o nosso comprometimento para com a sua memória.

O terceiro livro é sua obra mais radical, uma terra devastada – imagem evocada em sua narrativa – em que o autor peregrina em busca do que se é, da descoberta do sexo de outro homem, de recortes da subjetividade oprimida pela crise política brasileira, e a presente ausência de deus. Em texto publicado pela Revista Cult, o doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), Caio Cesar Esteves de Souza, aponta para os caminhos traçados por Matheus: “O enunciador do livro, enquanto reflete sobre a linguagem, mas também sobre muitos aspectos da vida em nosso mundo, que felizmente é mortal, busca a poesia com as mãos. Não com as pontas dos dedos, ou com a alma, mas com as mãos inteiras – uma linguagem tátil, matéria que pode ser alcançada, tocada, sentida em todas as suas limitações e produzida pelo toque.”

Trazer poemas ao mundo não é tarefa solitária. Para essa empreitada, Matheus conta com o apoio da editora Corsário-Satã e cada exemplar faz diferença nessa etapa, pois 100% da publicação de “Mesmo que seja noite” será viabilizada com os recursos da pré-venda (aberta até 01/08). É possível adquirir o livro com frete grátis para todo o país, durante o mês de julho, através desse link.

o mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro
de um trópico último com um último meridiano.

os olhos nublados de algo que não se adivinha

o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.

E é sobre literatura, poesia, poema, e arte que falamos nessa entrevista, enquanto nos deliciamos com palavras e cafés:

 

– O que te impele às palavras?
Boa pergunta. Eu sinceramente não sei. Às vezes me pego pensando nisso, sabe? Por que a escrita e não, sei lá, composição musical? Ou por que não arquitetura, natação, física? Acho que eu teria sido um físico feliz, que eu teria me encontrado nos números e nas leis da física. Mas isso pode ser só uma impressão de leigo, não é, de alguém que não entende o suficiente de física e que por isso fantasia. Pode ser.
Acho que o que “me impele às palavras”, como você diz na pergunta, é um desejo conflituoso, um querer-e-não-querer, um admirar-e-desprezar. A linguagem é o que eu conheço de mais fugidio, de mais escorregadio. A gente tenta, tenta, tenta, mas ela escapa, vai pra longe, desliza das mãos como um peixe. Talvez isso explique meu interesse. Como diz o grande autor cubano Lezama Lima, “sólo lo difícil es estimulante”. O desejo pela linguagem não deixa de ser um desejo masoquista.
Acho que eu busco algo ou alguém através da linguagem. Não sei o que, não sei quem. A psicanálise deve dar algumas respostas, mas não entendo de psicanálise. O que eu sei é que a escrita é uma busca. Talvez uma busca por sentido – sentido em mim, nos outros, no que está ao redor, na desgraça, no amor. Mas o pulo do gato é: e se não houver sentido? A gente precisa dormir com essa. E escrever mais, buscar mais, talvez criar um sentido. Dizem que às vezes o caminho vale mais do que o fim. Prefiro pensar que sim (nos meus dias mais otimistas).
Sinceramente não sei se vale a pena essa história de escrever. A gente alcança tão pouco, não é? Eu pelo menos alcanço tão pouco. Parece que a linguagem é feita de insuficiência. Penso na insuficiência como material de que ela é feita, sabe? Sempre ‘quase’, sempre ‘um pouco menos’, sempre ‘quem sabe um dia’. O narrador de A hora da estrela diz “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo”. Acho que é por aí, apesar de eu querer escrever pelo resto da vida, até o meu último dia. Contradições.

 

– Do primeiro ao terceiro, um salto. O mais ousado, radical, a literatura mais madura, afiada. Qual foi o percurso para chegar até “Mesmo que seja noite”?
Acho que foi um percurso de opostos. Tenho um problema com o meio-termo. Talvez algum dia eu resolva isso. Espero que resolva. Porque por enquanto eu sigo um caminho até ‘secar’ aquele caminho, e aí procuro outro (falei ali em cima que linguagem pra mim é busca, não é?). Mas isso tudo pode ser só minha impressão bastante duvidosa.
O A máquina de carregar nadas (Editora 7Letras, 2017) parece ser um livro solar, cerebral – o Mesmo que seja noite (Editora Corsário-Satã, 2020) parece ser noturno, tátil. A máquina de carregar nadas geométrico, Mesmo que seja noite musical (mas de uma música estranha, atonal quase). No A máquina de carregar nadas a linguagem é ainda heroína, apesar de tudo, mas no Mesmo que seja noite ela já é suspeita. Talvez algum dia seja vilã, mas por enquanto é só suspeita.
O meu outro livro, Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Editora Carlini & Caniato, 2018), foi escrito depois dessa briga entre A máquina de carregar nadas e Mesmo que seja noite, apesar de já ter sido publicado em 2018. O problema é que ele não é síntese dos outros dois – acho que essa síntese infelizmente não existe. Vejo Poemas em torno do chão & Primeiros poemas simplesmente como um momento seguinte, uma busca seguinte. A tensão entre A máquina de carregar nadas e Mesmo que seja noite fica lá sem resolução.
Enfim, talvez dê pra dizer que o Mesmo que seja noite é o mais radical porque nele o elemento central da escrita – a própria escrita – vira alvo de suspeita. Então é um livro que se constrói de um jeito torto, desconfiado, sem muita paz. Apesar disso (ou por isso), é o livro em que aparecem de forma mais incisiva a política brasileira recente (mesmo quando não é citada diretamente), a sensação de exílio do sujeito gay numa sociedade heteronormativa, a ‘presente ausência’ de deus, a experiência da perda.
De qualquer forma, se eu respondesse à sua pergunta amanhã, minha resposta provavelmente já seria bem diferente da que eu dei agora. Acho que já passei da fase de ter muitas certezas, as ‘verdades’ ficam todas meio suspensas (e suspeitas).

 

– Desde a sua primeira publicação, há grande expectativa sobre o seu trabalho. Como percebe essa responsabilidade que incumbem à literatura? Você a sente? É inerente ou indiferente?
Sinceramente eu não sei se existe alguma expectativa dos outros sobre meu trabalho, às vezes me sinto falando meio que sozinho, pras paredes, mas existe com certeza uma expectativa minha sobre ele. E isso é uma droga. Queria poder relaxar um pouco e me cobrar menos.
Quanto a essa “responsabilidade que incumbem à literatura”, acho que ela deveria ser a responsabilidade de todo sujeito, não só do artista. Não entendo o artista como alguém que vê mais longe, vê melhor, salva os outros ou ensina aos outros. Acho uma balela aquela história de que “o artista é a antena da raça”, que me perdoe o Pound. Ninguém é antena de nada, pelo menos não deveria ser. Eu não quero ser guia de ninguém, quero andar junto. Acho que cabe a qualquer pessoa – e, assim, também aos que se dizem artistas – estar atenta àquilo que acontece ao seu redor, dentro de si, dentro dos outros; atenta às estruturas sociais que dificultam a vida de alguns e facilitam a de outros; atenta ao absurdo da miséria e ao absurdo da suntuosidade.

 

– A construção das imagens poéticas em “Mesmo que seja noite” nos remete a cenas como o fazer do tempo, a violência de dizer palavras de amor, e mãos que seguem cegos itinerários. Você vê a poesia? A poesia é tato?
Acho que isso depende um pouco da época. Em alguns períodos eu penso o poema, em outros vejo, em outros ouço, em outros toco. Isso vai ficando registrado quase que sem querer – percebo muitas diferenças quando releio poemas meus desse ano, do fim do ano passado, do início do ano passado etc. A sequência de livros vai se tornando um tipo de cartografia ou de itinerário da minha busca – e acho que isso vale pra qualquer escritor. É um tipo de biografia involuntária, mesmo em poetas tão avessos aos derramamentos pessoais conscientes (como o Cabral, talvez). É possível que isso valha em alguma medida também pra quem não escreve: imagina o quanto cada um entenderia de si mesmo se pudesse relembrar com exatidão e em ordem cronológica todas as músicas que ouviu ao longo da vida, todos os filmes aos quais assistiu, todos os namoros e namoricos que teve, todos os xingamentos que já falou (e pra quem). A pessoa que escreve acaba tendo uma ajuda extra nesse processo, já que todos os poemas que publicou ficam lá, registrados nos livros. Mesmo os poemas que ela nem sabe mais que escreveu, nem se lembra. Acho que existe alguma beleza nessa cartografia involuntária.
Enfim, voltando à sua pergunta, hoje especificamente eu toco e temo o poema.


– Como você se relaciona com a poesia? E com o poema?

A relação com o poema é uma relação conturbada, cheia de ódio e de amor – mas é alguma relação, pelo menos. E duradoura.
Já a poesia é muito abstrata, com ela eu não me relaciono, ela deve existir em algum lugar, mas deve ser longe e o ônibus não chega. Prefiro o palpável do poema ao abstrato da poesia.

 

– Escrever: ofício? Dever? Doação? Libertação? Por que insistir na arte?
Pois é, boa pergunta. Acho que quando eu souber essa resposta eu não vou precisar mais escrever. Podemos combinar uma nova entrevista pra daqui 30 anos, o que você acha? Eu topo. Talvez eu tenha alguma resposta definitiva até lá – mas tomara que não, assim continuo a escrever e a buscar.

 

SERVIÇO
Título: Mesmo que seja noite
Autor: Matheus Guménin Barreto
Editora: Corsário-Satã
Número de páginas: 56
Ano: 2020
Formato: 12×18 cm
ISBN: 978-65-86209-02-0
Preço: R$ 36,90

Dois poemas de Matheus Guménin Barreto – Revista Matapacos nº4 – 7.2020

(Fonte: https://drive.google.com/file/d/1KQBsXFtT3sOC6ufWTeV-3zZ1mh4szXn_/view )

 

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

 

*

 

o sexo
devir perpétuo: tempo enclausurado
o amado e seu amado inventam tempo,
corpo, febre
e o que medi-los

Um poema de Matheus Guménin Barreto – Exposição “Corpo: lar temporário” (Residência Artística Casa/Corpo – Ateliê Livre de Arte do Museu de Arte e de Cultura Popular UFMT) – 7.2020

(Fonte: https://corpolartemporario.wordpress.com/ )

“Um ensaio do hoje em duas partes”, poema de Matheus Guménin Barreto a partir do qual a poeta Lívia Bertges criou o poema visual “Pouso” (disponível no link acima).

 

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

“Tabacaria” (Álvaro de Campos)

Um ensaio do hoje em duas partes
arder de agoras
/
pesar na mão o pouco sol que nos cabe,

*

Tatear no ar o braço
a mão
o colo
Tatear à procura do
chão morno, circular
Tatear a obra só prometida
que talvez não se cumpra
Tatear o espelho
e não achar os olhos com que olha.

Matheus Guménin Barreto: poiesis em meio à noite – Caio Cesar Esteves de Souza – Revista Cult – 8.7.2020

(Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/matheus-gumenin-barreto-poiesis-em-meio-noite/ )

 

Matheus Guménin Barreto: poiesis em meio à noite

*Caio Cesar Esteves de Souza

 

O mês de julho chegou ao Brasil em 2020 envolto em muitos ruídos. Uma peste mata a população – sobretudo sua parcela mais pobre – na casa das dezenas de milhares com a ajuda de uma pandemia; a Amazônia arde em chamas, enquanto seus povos indígenas são impedidos de chorar seus mortos pela ineficiência de um Estado que há séculos os coloniza e extermina; a polícia encontra, em uma casa luxuosa na cidade mais rica do país, uma idosa escravizada que estava encarcerada por seus patrões em um quarto sem banheiro nos fundos do quintal, senzala moderna, que também servia de depósito de tudo o mais que era considerado velho e inútil à Casa Grande. Uma nuvem de gafanhotos, olhando o país, prefere dar meia-volta e pedir asilo ao Uruguai – quem ousaria empestar a peste? Em meio a esse cenário, somos surpreendidos por uma notícia da editora Corsário-Satã: a publicação de Mesmo que seja noite, de Matheus Guménin Barreto, que não poderia sair em melhor hora.

Digo isso sem ironia alguma. Desde seu título, o livro é uma reação aos pressupostos do estado das coisas que nos levaram ao ponto em que nos vemos, sem sabermos muito bem para onde olhar em busca de um refúgio. O livro é também, como é o caso de outros trabalhos do Matheus, excelente poesia. Combinar esses dois elementos não é tarefa fácil, isso todos nós sabemos; mas Mesmo que seja noite chega lá por entender que a tarefa da poesia não é propor respostas, mas traçar caminhos e caminhos para caminhos. Levando a sério a compreensão de poiesis como um fazer, o livro reflete e age sobre o fazer como um todo – o fazer do tempo, dos corpos e, principalmente, da matéria que permite que tudo isso exista, a linguagem.

A referência que Matheus faz, no título da obra, ao poema que talvez seja o mais famoso de San Juan de la Cruz (1542-1591) contém todos os elementos necessários para que se compreenda a operação que o poeta cuiabano propõe em seu livro. O poema de Juan de la Cruz é composto por tercetos que se encerram com o refrão “Aunque es de noche”. Sua construção poético-retórica se desenvolve da seguinte maneira: os dois versos mais longos do terceto referem-se a Deus, a fonte que é origem e conhecedora de todas as coisas, e que se apresenta no “pan de vida” da eucaristia; em seguida, vem o refrão concessivo, que reconhece que o enunciador e sua audiência estão em meio a uma noite metafórica. O mundo secular, com todos os seus problemas e sofrimentos humanos, representado por essa noite, é reiterado diversas vezes no poema, sempre antecedido de um “mesmo que”, cuja função é subordiná-lo à existência divina afirmada e reafirmada nos dois versos que o antecedem. Dessa maneira, o poema recria uma trindade em sua forma, de modo que o divino, presente em dois de seus versos, sobreponha-se ao que há de humano no terceiro – ainda que esse mundo seja matéria e seja mortal, como o pão que se come na eucaristia, ele partilha da origem de tudo o que existe, da fonte que não precisa de chão para se firmar, do círculo com centro em toda parte e circunferência em parte alguma. Unidas, as afirmações e contradições dos tercetos produzem o mistério do todo que está presente inteiro em toda parte.

Mas isso é San Juan e é século 16. O que Matheus Guménin Barreto faz com essa referência é inverter o pressuposto da trindade na forma do poema de San Juan: traz ao título não a fonte, mas a noite. Mesmo que seja noite não se apresenta como uma superação da noite que é a existência humana, mas como a constatação de que essa noite não é necessariamente seguida por um dia. O humano e, mais do que isso, a materialidade das coisas é que são o tema e o meio a partir do qual essa poesia é construída. O enunciador do livro, enquanto reflete sobre a linguagem, mas também sobre muitos aspectos da vida em nosso mundo, que felizmente é mortal, busca a poesia com as mãos. Não com as pontas dos dedos, ou com a alma, mas com as mãos inteiras – uma linguagem tátil, matéria que pode ser alcançada, tocada, sentida em todas as suas limitações e produzida pelo toque.

Nesse fazer poético, o lugar que cabe às essências e ao próprio deus é sucintamente indicado no título de uma das partes do livro, Deus in machina. Não há mais lugar para o acaso que resolve artificialmente todos os conflitos humanos em um ato da providência divina, ex machina. Agora, deus e qualquer outra abstração são apresentados in machina, dentro desse mecanismo discursivo que é radicalmente humano e material. O poeta impõe a esse círculo que se quer infinito uma circunferência forjada pelas mãos humanas –

“mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas”

Apesar de ser uma constante investigação sobre a linguagem, Mesmo que seja noite é tudo menos um livro verborrágico. Nas pouco mais de cinquenta páginas que o compõem, o poeta é menos ouvido que visto. Seu corpo é presente em vários momentos dos poemas, seja quando reflete sobre suas mãos, ou quando descreve o atrito de seu corpo com o do amado. Suas mãos traçam no corpo do amado, entre suor e gozo, mapas de mundos por vir. A cosmogonia proposta tem como fundamento a carne: as bocas que existirão, os pés que andarão são modelados a partir do contato de pele com pele, homem com homem, sem intervenção divina. Cabe aos homens traçar o futuro.

“O mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro de um trópico último com um último meridiano. 

Os olhos nublados de algo que não se adivinha
o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.”

 

Mesmo que seja noite aponta caminhos para que possamos repensar nossa relação com a linguagem, os corpos e o mundo miserável que nos cerca. Não nos apresenta qualquer resposta, seja ela fácil ou difícil, sobre o que é preciso fazermos. O livro faz o que é possível à poesia fazer – e isso não é pouca coisa. Ele nos mostra que, mesmo que seja noite, é possível e necessário agir, aceitar o que há de humano, mortal e frágil em nós, ainda que não haja qualquer possibilidade de redenção. Talvez justamente por não haver qualquer possibilidade de redenção. O mundo é a noite, é a pulsão de morte e a terra arrasada que nos cerca. O que nos resta é sermos humanos, agirmos como humanos, como os seres constituídos de matéria que somos. É devolver às nossas mãos o poder de interpretar, moldar e produzir mundos futuros, sabendo que seremos, por fim, derrotados. É perder o medo de agir justamente por não ter mais esperança na vitória. Por isso, repito, a Corsário-Satã não poderia ter publicado esse livro em melhor hora: Mesmo que seja noite é um livro necessário em nossos tempos – tão necessário quanto qualquer livro pode ser, e é.

Mesmo que seja noite
Matheus Guménin Barreto
Editora Corsário-Satã
56 páginas – R$ 36,90

*Caio Cesar Esteves de Souza é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e atualmente realiza outro doutorado na Harvard University.

Sete poemas de Matheus Guménin Barreto em catalão (tradução de Josep Domènech Ponsatí) – Revista A Bacana – 12.6.2020

(Fonte: http://www.abacana.com/oficial/sete-poemas-de-matheus-gumenin-barreto-traduzidos-para-o-catalao-por-josep-domenech-ponsati?fbclid=IwAR18OpuWZMyxCWcKSxGN-PxHn8J8AjgZ7hGqIQpphKgTEwRzNGF3Xm2fsms )

 

Matheus Guménin Barreto (Cuiabá/Mato Grosso, 1992): poeta brasiler. Autor dels llibres A máquina de carregar nadas (2017) i Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (2018).

“El poema madura i cau. 7 poemes de Matheus Guménin Barreto”

Del llibre A máquina de carregas nadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017

Traducció de Josep Domènech Ponsatí

Petits Furts [2020-26]

 

Neste tempo
Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
─ só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas
recém-cortadas.

 

En aquests temps
En aquests temps d’horror
en aquests temps
en aquests temps sense temps
de mans crispades i hivern a les dents
de riures que no existeixen
─ l’únic amor que existeix és l’amor dels animals
i el de les memòries fresques
acabades de tallar.

 

*

 

Poesia

Ou fruto apenas entre os dentes
prestes prestes prestes a romper-se.

 

Poesia
O fruit només entre les dents
a punt a punt a punt de trencar-se.

 

*

 

Gênese do poema
a –
O poema, ele amadurece
pendurado no céu da boca.
Incha, avermelha

e cai, sem aviso.

O poema amadurece e tomba
(mas amadurece por meses, por
anos, por décadas
por mortes e vidas
pendurado à garganta das gentes)

O poema, ele amadurece
pendurado no céu da boca.
E não ouse mão alguma
puxá-lo, que é força pouca
ou nenhuma

sempre.

Ocupa a garganta inteira,
amanhece na língua,
tateia seu lugar
e enfim, entre os dentes, já fruto
(abacaxi, pêssego, maçã)
inteiro salta o poema
ao tempo nosso da lida vã.

Ganha muito, o homem,
na digestão dos poemas.
Às vezes só viram fezes,
às vezes são chave e problema.

 

b –
Basta um pousar diverso
basta um passar de mão atemporal
para o
tempo presente os homens presentes
fixarem-se em Matéria Primeira.

 

Creació del poema
a –

El poema madura
penjat al cel de la boca.
S’infla, envermelleix

i cau, sense previ avís.

El poema madura i cau
(però madura mesos i mesos, anys
i anys, dècades i dècades
morts i morts, vides i vides
penjat al canyó de la gent)

El poema madura
penjat al cel de la boca.
I que cap mà no gosi
estirar-lo, perquè la força és poca
o cap

sempre.

Ocupa el canyó sencer,
es desperta a la llengua,
palpeja el seu lloc
i finalment, entre les dents, ja fruit
(pinya, préssec, poma)
sencer salta el poema
al nostre temps de la feina il·lusòria.

En treu molt profit, l’home,
de la digestió dels poemes.
De vegades només es tornen femta,
de vegades són clau o bé problema.

 

b –
Només cal un posar divers
només cal una manyaga intemporal
perquè
el temps present els homes presents
es fixin en Matèria Primera.

 

*

 

Primeiro
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.

A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes

sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria

e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.

 

Primer
El propi toc en les coses
per recordar les mans de
l’arquitectura neta d’allò
que el món va crear.
La mà neta, cartesiana, recta
per les coses
per treure la pols dels noms
sol, tassa, clova, rajols, préssecs, misèria
i tocar un altre cop
com el Dia Primer
alguna cosa dels noms
que vibri.

 

*

 

Casa
O silêncio que contêm
os objetos da casa –
mesa cadeira tapete
panela livros,

o silêncio que têm
no interior
colhido nas longas horas em
que olho algum
lhes pousa na superfície,

o silêncio colhido
na atribulada solidão
que as coisas de uma casa têm e são

e que, assim, fazem-na
casa.

 

Casa
El silenci que contenen
el objectes de la casa ─
taula cadira catifa
cassola llibres,

el silenci que tenen
a dins
collit durant les llargues hores en
què cap ull
hi reposa a la superfície,

el silenci collit
en la desoladora solitud
que tenen i són les coses d’una casa

i que, per tant, la fan
casa.

 

*

 

Praia
A onda inacabável:
lição de eternidade.

 

Praia
L’onada inacabable:
lliçó d’eternitat.

 

*

 

Poema amarelo
a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê

e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê

 

Poema groc
el ganivet ha de ser eloqüent
i parlar sabent el perquè

i pronunciar el discurs de nafra
ferida
a la carn que llegeix el ganivet

Um poema de Matheus Guménin Barreto – Revista Pixé nº16 – 1.7.2020

(Fonte: https://www.revistapixe.com.br )

 

[sem título]

descobrir as palavras eu te amo

pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e

descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las.

*

Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg e na Universidade de Leipzig. Encontram-se poemas seus traduzidos para o espanhol, o catalão e o inglês (Revista Cult, Escamandro, Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.
Publica livro novo em 2020 pela editora Corsário-Satã.