Uma impressão sobre sete poemas de Matheus Guménin Barreto – Caio César Esteves de Souza – 30.5.2017

*por Caio César Esteves de Souza
[Caio César Esteves de Souza é mestrando na área de Literatura Brasileira da FFLCH-USP, com projeto sobre Alvarenga Peixoto e a poesia árcade luso-brasileira. Também é membro da Modern Language Association (MLA)]

(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=504471 )

30 de maio de 2017

No último dia 29, os entusiastas da poesia tiveram uma ótima surpresa trazida à tona pelo blog lusitano Enfermaria6: a publicação de sete poemas inéditos de Matheus Guménin Barreto, escritor cuiabano já conhecido entre nós por suas traduções de Bachmann e Brecht. Sete poemas que exigem de seu leitor sete, oito ou nove releituras pelo fascínio que o fino trabalho com a linguagem gera naqueles que se dispõem a apreciá-lo.

Os poemas são independentes, como é da natureza de todo poema, ainda que os poetas por vezes desejem que não o sejam; no entanto, estão juntos sob um mesmo título – Sete poemas – que, embora genérico, sugere algumas possibilidades de interpretação do conjunto. Dois me parecem ser os assuntos desses poemas: o tempo e a dissolução. O primeiro texto – “Poema do amado para seu amado” – é um belo exemplo da capacidade que a poesia tem de domar a elasticidade do tempo. Um instante com o amado cria uma nova chave de interpretação do mundo, ressignificando de pedras a astros, em movimento pendular entre noite e dia, silêncio e voz. O poema se encerra com chave-de-ouro, se ainda nos é permitido utilizar essa expressão, com a aguda metáfora do corpo daquele que ama – o próprio enunciador – como eclipse violento, representando em dois versos a mistura de sensações que levou inúmeros poetas lusófonos a derramar rios de tinta desde o fogo que não se vê de Camões.

O segundo e o terceiro poemas – “Canto de Dissolução” e “Se questo è un uomo” – apresentam o tempo como a sepultura última e o arauto do fim inevitável. O “Canto de Dissolução” apresenta uma interessante tensão interna, por ser composto por versos e estrofes regulares e bem martelados ao passo em que veicula uma ideia que se desmancha quando o leitor tenta tocá-la. Essa tensão explode, enfim, na última quadra, dissolvendo-a em dois dísticos que destroem a expectativa de superação da morte anunciada. O terceiro poema, por sua vez, expõe a efemeridade da vida humana e a associa à radical negação de um propósito para a nossa existência: melhor seria ter a Criação sido gasta com pedras rios, prados, bichos, que com homens, que nascem para morrer.

Os sete poemas são então cruzados pelo Rio Lete, que dá nome ao texto que divide o conjunto – “O último poema ou Rio Lete” – de maneira nem um pouco leviana. Esse poema parece expressar o desejo por uma trégua na luta com o tempo; desejo esse que só seria possível se acompanhado pelo mais absoluto esquecimento. O mergulho no Lete é a atitude do afogado que tenta tomar um último fôlego antes de se resignar à sua absoluta incapacidade de se salvar. Não há fuga possível do tempo.

Os dois poemas que se seguem demonstram uma guinada na atitude do poeta. Não sendo possível fugir do tempo, é preciso enfrentá-lo. O quinto poema, sem título, questiona se é lícito ao poeta dedicar-se ao exercício autorreflexivo enquanto a barbárie no país coloca fim à vida – e à possibilidade de vidas – de várias pessoas, concedendo a uma bala o poder de anular o tempo. O sexto, igualmente sem título, demonstra a perplexidade de um “alguém num apartamento de classe média-alta” – segundo nos parece, o próprio enunciador – ao observar a radical divisão (ideológica mas, também, de classe) do país. O poema projeta o tempo presente em uma natureza microscópica de partículas que se agrupam “na dança do ir sendo” e multiplicam tudo o que existiu, existe, existirá ou poderá vir a existir de maneira pródiga. Todos esses elementos, que despencam do colo do tempo, “fulminam” o alguém já mencionado, e dessa fulminação surge o poema.
A circunstância da Pec55 e a perenidade da barbárie no país se apresentam, assim, como dados do tempo com os quais o poeta tenta lidar, mas não consegue. As palavras conseguem dar forma a sentimentos e desejos, mas são incapazes de torná-los efetivos no mundo que circunda o discurso poético. Todas as palavras, os sentimentos e os desejos se mostram inúteis para lidar com o tempo presente. Dessa constatação parece surgir o último poema, que volta a ter um título – “Inútil” –, rompendo com a breve tentativa de enfrentamento dos dois anteriores. Tudo se mostra “inútil soberanamente inútil”.

Assim, Matheus Guménin Barreto deixa seu leitor sem alento, face a face com seu tempo, na inconfortável, mas necessária posição de responder ao que se lhe apresenta. Seus poemas são construídos com artifícios sutis, que trabalham a forma de maneira minuciosa e delicada, para que não sejam notados. Os versos são fluidos, recheados de imagens simples e pontuados por algumas que fogem totalmente da mediania, conduzindo o leitor por um caminho equidistante do tédio da simplicidade exagerada e da afetação inerente a qualquer experimentação vanguardista nos tempos atuais. Os poemas, individuais, têm coerência em conjunto e melhoram a cada releitura, como é natural que aconteça com textos dessa qualidade. Leitura prazerosa e instrutiva, frutos de uma (po)ética consciente de si e de seu tempo, os Sete Poemas de Matheus Guménin Barreto colocam seu autor no mapa dos poetas contemporâneos que merecem nossa atenção.

*

Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Brasil. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017). Publica pela Editora 7Letras (RJ) em agosto de 2017 seu livro de poemas A máquina de carregar nadas.

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)

os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)

a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)

e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

*

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

SE QUESTO È UN UOMO

Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

*

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE

A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

*

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
é que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe, de um pai, de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

*

INÚTIL

Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio

Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.

Sete poemas de Matheus Guménin Barreto – Enfermaria 6 / Portugal – 29.5.2017

(Fonte: https://enfermaria6.squarespace.com/blog/2017/5/29/b8aml0efedkr29ew7buu7891sybr03 )

Matheus Guménin Barreto (1992) nasceu em Cuiabá, Brasil. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de Ingeborg Bachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017). Publica seu livro de poemas no segundo semestre de 2017 pela editora 7Letras.

*

POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO

“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo”

– Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007.

a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.

b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer

pois

a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras

fechadas de pôr do sol

c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios

até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr

flor
que anoitece

– e o eclipse do corpo meu
é violento

 


 

CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

 


 

SE QUESTO È UN UOMO
Como é possível
um homem?
Pra quê? Pra que
lhe deram nome?
Que faz o homem?
Se, mal existe,
já some?

Como é possível
haver um homem?
Melhor seria
tivessem gasto
a Criação
em rios, em pedra,
em bicho, em prado,

em homem não.

O homem nasce,
vê, come e morre
já sem perdão.

 


 

O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE
A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.

 


 

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
é que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe, de um pai, de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

 


 

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

 


 

INÚTIL
Inútil
inútil o gesto o plexo o beijo
inútil o desejo e o não-desejo
[igualmente
Inútil inútil o salto e a pausa
Inútil a mão no ombro alheio
[e próprio
Inútil soberanamente inútil
o gesto o plexo o beijo
nas campinas afiadas de verde
nas geometrias escuras da mente

e essa vontade de amar.