Como é possível um homem? – Marília Beatriz Figueiredo Leite – 28.9.2017

*por Marília Beatriz Figueiredo Leite,
presidente da Academia Mato-Grossense de Letras
(Fonte: http://circuitomt.com.br/ )

28 de setembro de 2017

CRÍTICA LITERÁRIA: No dia 16 de setembro houve o lançamento do livro de poemas “A máquina de carregar nadas”, de Matheus Guménin Barreto. Matheus cursou Letras Português-Alemão na USP, onde cursa hoje pós-graduação em tradução de poesia alemã. A Presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, nossa imortal Marília Beatriz Figueiredo Leite comenta aqui o que achou sobre este segundo livro do poeta cuiabano.

***

MATHEUS GUMÉNIN BARRETO traz em seu mais novo livro – verdadeira Bíblia Poética – a obra de arte pronta como oferta, como realização de dizeres da Vida enquanto signos da escrita e ícones do silêncio.

Para ela conflui não o saber fazer, mas sim o lançar do sabor de fazer transformador da pura realidade em máquina instauradora das possibilidades – de um real que não se apresenta como NADA, pois persegue e prospecta as possibilidades da produção …

O rumor questionador ou o silêncio prospectivo criam a impressão daquilo que Antonio Candido chama atenção: “…o panorama é dinâmico, complicando-se pela ação que a obra realizada exerce tanto sobre o público, no momento da criação e na posteridade, quanto sobre o autor, a CUJA REALIDADE SE INCORPORA EM ACRÉSCIMO, E CUJA FISIONOMIA ESPIRITUAL SE DEFINE ATRAVÉS DELA”

É dentro desse entesouramento que Matheus G. Barreto vai tracejando, construindo como edifício o seu escrever a identidade da desenvoltura do equívoco em Nada. Inexiste nada em Máquina. O que se retira desse nada é a construção obsessiva e sábia de um poeta em busca da fonte da Ars Poetica, que se impõe com o vigor das questões, “do branco sobre o branco é nada”.

Sinto na poética da máquina, no costurar do autor, no traçar que fagulha do livro, o amor que captura como raiz e que irrompe num frêmito a pesquisa da alma literária, e que como um foguete parte em busca da amplidão de um horizonte literalmente emocional.

Ainda dentro de descrições que apontam infelicidades(?): de um momento para o outro se faz estrutura, e o estilo seduz – retirando de todos leitores e autor a mesma face ou a mesma parte que enfeixa seu colaborar com um universo particularmente uníssono:

“NA ESTREITA BAÍA DO CORPO
a-
Onda: eterna insuficiência,
fadada a sempre cortejar o nunca
sobre uma terra que se lhe foge
perto e inalcançável.”

(BARRETO, Matheus Guménin. A máquina de carregar nadas)

Creio que aqui são lançados dentro da circulação da roda, onde arte, realidade e o Nullit se fundem para, edificados em templo, não se confundirem.

Eis Matheus poeta/mágico, poeta/engenheiro, poeta/filósofo que provoca nestas múltiplas constituições o instalar de um centro de forças que suporta a distribuição do bem poético.

Pois bem “a máquina de carregar nadas “ é a conjuntura de partilhar o pão da poesia bem arquitetada, ou a bíblia de acrescer preceitos de amoressência .

E mais não posso escrever, pois tenho muito ainda a ouvir ‘inside’ Matheus – com belezas.

*ocupante da cadeira n°2 da Academia Mato-Grossense de Letras, Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e professora adjunta da UFMT-aposentada.
Quase noite da primavera inaugural cuiabana. Setembro de 2017.

Assim na Terra, como em Matheus – Luiz Renato de Souza Pinto – 26.9.2017

*por Luiz Renato de Souza Pinto
(Fonte: http://www.cidadaocultura.com.br/assim-na-terra-como-em-matheus/ )

26 de setembro de 2017

Começo a escrever esta crônica no dia 20 de setembro de 2017 (D.C). O Rio Grande do Sul está em festa. Mais um aniversário da revolução farroupilha. Folheio as páginas de Assim na Terra, romance do (falecido) autor gaúcho Luiz Sérgio Metz. Li o livro e conheci o autor no ano de 1993 ou 1994. Morei em Porto Alegre em 1996, quando já era falecido (em 20 de junho daquele ano). Estava à entrada do Bar do Beto, já no endereço novo na Avenida Venâncio Aires (meio do quarteirão), próximo ao Parque da Redenção, na capital gaúcha quando pude entabular uma conversa com ele. Isso voltou a acontecer mais uma ou duas vezes, não me recordo bem ao certo.

Não me recordo bem ao certo, mas na capital gaúcha, naquele ano li muito sobre o Rio Grande, a cultura gauchesca, na verdade fiz um mergulho na literatura rio-grandense para compreender esse espírito aventureiro e conquistador que vem dos pampas engolindo o Brasil, espaçando-se pelo território nacional, sobretudo a partir da era Vargas. E o livro de Metz sobra em meio à maioria dos escritos que pude percorrer. Agora me surpreendo quando, dentre outras citações, deparo-me com uma de seu romance no livro de poemas de Matheus Guménin Barreto, lançado recentemente a máquina de carregar nadas.

Carregar nadas; volta à minha cabeça o momento em que troquei duas ou três palavras com o escritor. À época eu viajava o país a vender poesias nos bares vestido de garçom, personagem que retiro do armário para empreender novas buscas por leitores, às vésperas de lançar novo livro de poemas, vinte e quatro anos depois de Cardápio Poético.

Cardápio poético: em busca da data exata de falecimento do Jacaré, alcunha pela qual era conhecido, deparo-me com um artigo escrito por Matheus sobre Assim na Terra, o que me fez compreender melhor as razões de seu encantamento com o romancista de um livro só (ele publicou outros dois, mas romances, foi o único). Como estamos no mês de setembro prefiro uma citação que introduza o leitor ao livro pelo começo, cujo primeiro tópico é PRIMAVERA…

Setembro respinga asas em nossos olhos, tudo está dentro de alguma coisa que não sabemos onde, os travesseiros se iluminam. Cheiro de voo no ar. Setembro põe polens na barba dos avós. Enluara os pentelhos das nossas mães. Muda de casa nossas irmãs. Os irmãos, sem paradeiro, olham fixo nossos pais, que fumam olorosos cachimbos às oito da noite lendo enciclopédias sobre vedas e obscuros fenícios que devolviam seus remos a Cartago (METZ, 2013, p. 9).

Primavera: estive em São Leopoldo em abril deste ano em um congresso sobre decolonialidade, na UNISSINOS, e passeando pelas livrarias da cidade (encontrei duas) adquiri uma segunda edição do livro de Metz. Vi-o, flertei com o livro e voltei no dia seguinte para buscá-lo; trazer para casa, para o meu convívio. Um primor, como todas as obras da recém-falecida editora Cosac Naify. Agora, inspirado pela leitura de Matheus, volto às páginas do Jacaré para saborear sua erudição mesclada com o linguajar pampeano, trinacional por excelência.

Por excelência, a vertigem provocada pelas construções do jovem poeta cuiabano traz certa simetria ao olhar despretensioso com o qual me dirijo paulatinamente às suas construções. Em meio aos andaimes cabralinos de sua poética, da qual ressurgem fantasmas e espectros variados da cultura ocidental, vou pescando intertextualidades febris que se enamoram discretamente de meus pontos de vista. Li o livro no próprio local do lançamento e metade cheio de primeiras impressões, esvaziei-me do contágio ao dialogar rapidamente com o poeta em face do imprevisível arrebatamento pela referência ao Metz.

Referência ao Metz: para fugir ao clichê de tecer comentários acerca da erudição do uspiano, recolho-me a uma referência que me pareceu implícita e que me lembrou os corredores da faculdade de letras da UFRJ, quando, no final dos anos 1980 pude comercializar livros usados em um mini sebo que funcionou por dois anos naquele local. Convivi com pessoas bastante interessantes, dentre as quais um jovem irrequieto de nome Carlito Azevedo, hoje poeta premiado e dono de erudição invejável para os padrões pequeno-burgueses da cultura nacional.

Cultura nacional: A poesia de Matheus me traz à luz essa referência. E talvez por aí compreenda a importância da referência de Assim na Terra em sua literatura.  Depois da GEOMETRIA QUANDO AINDA HÁ CHÃO, em que os silêncios copiados a lápis de sua poesia rastejam no terreno pantanoso das palavras; da CARTOGRAFIA PROVISÓRIA, em que os mapas da construção poética se misturam dos pés à cabeça com a gênese vocabular de uma escrita palimpsestica, há uma POESIA OUTRA VEZ EM PÂNICO & RETOMADA, de onde surge também a sua primavera, poema em prosa no melhor estilo baudelairiano, que se costura ao ramalhete de infusões com as quais o Jacaré tempera seu caldeirão mítico de referendos: Fellini, Eliot, Mallarmé, Bashô, Kafka, Goethe e Haroldo de Campos, como observa Jerônimo Teixeira, em fragmento decalcado à contracapa da edição da Cosac Naify. Decantam-se os versos de Guménin Barreto, à página 59 de seu belo livro:

pode um homem morrer na primavera? e o grito todo e toda a lágrima e o fio branco e a vida engasgada na garganta de quem fica? o fruto o fruto o fruto da vida engasgado na goela da mãe quando o fruto do seu ventre – cai? (é primavera é primavera é primavera caem os frutos? caem os frutos na primavera? caem caem os frutos?) (BARRETO, 2017, p.59).

Belo livro: vida longa para o autor de a máquina de carregar nadas. Que nos brinde com muitas primaveras e que a gente também viva o suficiente para abrigar em nosso peito o aroma indócil de uma poesia agressiva pela erudição premente e suave pela doçura incompreensível de palavras incontestes. Que há futuro nesse veio, não tenho dúvidas. Que venham outros livros deste faiscamento e que nós, pobres mortais, vivamos o suficiente para abrigar em nossos agadês externos e internos mais arabescos dessa pseudo pós-modernidade tardia que se liquefaz diariamente aos nossos olhos marejados de tanta luz e sombra. É primavera; e os que viverem mais verão!

Os alquimistas estão chegando – Eduardo Mahon – 17.9.2017

*por Eduardo Mahon

17 de setembro de 2017

O poeta Matheus Barreto lançou o segundo livro de poemas. Para mim, uma promessa que se realiza. Sentado à minha frente, 1 ano atrás, ele me explicava as três fases que iria se propor a experimentar no livro. Me confidenciou: haverá páginas em branco, sem ter o que dizer e, depois, uma retomada forte. Fiquei esperando a massa fermentar e, na fila do pão, fui precedido apenas por uma poeta mais ligeira, Lucinda Persona. Vim para casa, li o livro à noite para relê-lo, na manhã seguinte. É que a poesia, como os lobisomens, têm duas formas: uma diurna, racional, cognoscível, organizada, apolínia e outra, noturna, risonha, trôpega, dionisíaca a agradar leitores bêbados de novidades.

Matheus escreve sobre a dissolução e a perenidade, assunto para alquimista. Na primeira parte de “A Máquina de Carregar Nadas”, pela editora 7 Letras, trata de separar os elementos mais preciosas das coisas que ficam entranhadas e com elas se misturam. Talvez por essa razão alquímica, o poema inaugural seja mesmo o “canto de dissolução”, onde o tempo atual no cadinho mágico: “sepultados, enfim,/ no tempo, todos nós.//Onde não há nem feito,/ nem pessoa, /nem voz”. O autor prossegue no ofício da separação: o nome da voz, a voz do homem, o lápis da ideia, o sentimento do peito, o sal do mar, o ser da carne e, por fim, a própria consciência: “Já sabe ele ser? Não sabe/ Se soube, desaprendeu./ Será que um dia o homem/ é só seu?”. A fim de evitar tanto sofrimento nesse processo de decantação, o poeta decreta o esquecimento “e, com o tempo, esquecer-se do tempo”.

A poesia é existencial em Matheus Barreto. Não tem aquela simplicidade do pão amanhecido, do chinelo virado, da salada com nozes. A narrativa, a temática, a estrutura do livro quer pensar o ser por ele mesmo, ir a fundo, mergulhar na essência. Dentro de um “tempo sem tempo” como o escritor faz menção à segunda parte “cartografia provisória”, investiga onde encontrará a própria poesia: na boca, debaixo da pedra, no copo d’água. Para mim, trata-se das etapas da conjunção e da fermentação. É ali que os objetos emanam o que têm de inato. O Matheus sartreano dá espaço ao Matheus platônico, debatendo-se entre a forma e a essência. No poema “Missa de 7º Dia”, por exemplo, ainda há visível o trabalho de depuração. A cama que carregava o morto precisa de limpeza, ar, sol, para que a sombra da morte – e do morto – desgrude-se do objeto.

Nesse paradoxo existencialista e platônico, naturalmente viria a pergunta: e se as coisas não completarem a missão para a qual são feitas? É claro que o poeta vai falar de si: “E o que fazer quando o homem/ de nome emprego identidade/ não sabe se o que olha no espelho/ existe – e, se existe, em que parte?” No ceticismo, Matheus Barreto encerra a segunda parte e começa a terceira, uma literal “retomada”, sem a tradicional estrutura poética, abundando espaços vazios, com perguntas sem respostas, inversões de sentido – “você está com a boca cheia de silêncios”. Páginas e páginas em branco, pautas musicais sem notas, um vazio melancólico de quem foi ao fundo do poço. É a destilação poética. Finalmente, o nosso alquimista volta ao poema e se torna maduro. Aprende que o mar é a gota, a cor é o olho, a poesia é instante. Toma uma resolução “quem tem/ coragem/ de/ falar// quando a fala/ sabe/ que sua única voz/ verdadeira/ é quando cala”.

No fim, Matheus Barreto percebe que eloquência demais violenta a palavra. É preciso dizer pouco e, ainda assim, correr o risco de tudo ser inútil. Aí está a coagulação da palavra! Esse é um livro de um poeta culto (que também quer parecer culto com tantas referências intra e intertextuais), fortemente influenciado pela contemporaneidade de Bertold Brecht, para o qual o desenlace é menos importante do que a ação e o ciclo contínuo é o ator principal da vida. Para onde ir não interessa, o importante é caminhar. Do meu ponto de vista, este segundo livro, muito mais curto, objetivo, refletido do que o primeiro, marca uma maturidade antecipada de um rapaz que ainda não tem a barba cerrada, mas que já se iniciou com os alquimistas das palavras.

 

Entrevista no Diário de Cuiabá – 16.9.2017

*por Enock Cavalcanti
(Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=507804 )

16 de setembro de 2017

 

Fruto de um trabalho de cinco anos, o escritor e poeta cuiabano Matheus Guménin Barreto lança em sua cidade natal o livro de poemas “A máquina de carregar nadas”. O lançamento acontece neste sábado, às 19h30, no café-bar Metade Cheio, na rua Comandante Costa, 381, bem no coração de nossa capital.

Matheus atualmente mora em São Paulo, onde faz pós-graduação em tradução de poesia alemã e onde também cursou Letras Português-Alemão, na Universidade de São Paulo (USP). Seus poemas já foram publicados em revistas especializadas no Brasil e em Portugal. Estudou por um ano na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e em 2017 foram publicadas traduções suas de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. No mesmo ano apresentou em Cuiabá palestra intitulada “5 décadas, 5 poetas” sobre os poetas brasileiros João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Conceição Evaristo, Lucinda Nogueira Persona e Ana Martins Marques.

Via e-mail, o DC ilustrado conversou com o poeta, que explicou como e por que dedica sua vida à poesia.

Diário de Cuiabá: Você tem dedicado sua vida à poesia, seja nos estudos, seja na produção literária. Por que essa opção?

Matheus Guménin Barreto: Não sei bem se essa foi uma opção consciente minha, ou se as coisas simplesmente se encaminharam de um jeito que ‘acabei poeta’. Acredito mais na segunda opção.

Desde cedo tive um interesse enorme por literatura: comecei a ler por prazer já aos 9 anos de idade (livros infantojuvenis, claro), e acho que desde os meus 14 ou 15 anos não termino um livro sem já ter o seguinte à mão. Nos primeiros anos eu lia apenas prosa, e só aos 15 ou 16 comecei a ler poesia. O engraçado é que comecei a escrever poesia quase que na mesma época em que comecei a ler poesia. Lembro-me que tive na escola uma aula sobre Gonçalves Dias: nesse mesmo dia voltei para casa com o ritmo de um dos poemas martelando tão forte na minha cabeça que escrevi meu primeiro poema naquela mesma estrutura rítmica. É claro que esse meu primeiro poema não era lá muito bom, mas assim comecei a escrever poesia.

Além desse fator ‘gosto pela leitura’ há um outro, tão importante quanto o primeiro no meu desenvolvimento como poeta: o fator ‘privilégios sociais’. Foi por causa deles que tive acesso a centenas de livros, tempo livre para treinar a escrita, tempo livre para pensar na escrita. Acho que é importante reconhecermos nossos privilégios para não cairmos naquela velha história da ‘meritocracia’ – que não existe, é claro. Ter privilégios sociais não me fez poeta, mas certamente facilitou o caminho – e não tê-los dificultou o de outras pessoas igualmente capazes.

Nos anos seguintes escrevi demais: algumas publicações; centenas e centenas de poemas por mês, quase todos medianos ou ruins – mas acho que esse processo todo foi muito importante para o desenvolvimento da minha escrita. Hoje estou muito contente com o que escrevo. Costumo dizer que sou meu pior inimigo na escrita: não tenho pena de jogar páginas e páginas no lixo. Acho que é importante ter um olhar crítico em relação à própria obra, saber se desvincular emocionalmente de um texto seu quando se está revisando esse texto.

Venho trabalhando há 5 anos em “A máquina de carregar nadas”, e depois de cortes, cortes e mais cortes cheguei a um resultado que me deixou muito feliz. O lado bom de avaliar duramente seus próprios textos é ter a liberdade e a leveza de se alegrar depois, quando se chega a uma versão final.

D.C.: O título do livro “A máquina de carregar nadas” tem algo de melancólico. É triste a sua poesia ou ela guarda algumas alegres surpresas para seus leitores?

M.G.B.: Não vejo minha poesia como uma poesia triste – assim como não a vejo como alegre. Acho que a poesia (e a arte de modo geral) está num outro lugar, num espaço além do ‘triste’ e do ‘alegre’. Acho que a poesia (pelo menos a que me interessa) tem a função de puxar o tapete, de nos tirar do modo automático, de nos fazer observar o que somos e o que as outras pessoas e coisas são. Então não, eu particularmente não acho que minha poesia seja triste.


D.C.: Poeta com espaço que se amplia pelo Brasil e pelo mundo, qual a importância de lançar seu livro também em Cuiabá?

M.G.B.: Nasci e cresci em Cuiabá, então acabei criando uma relação afetiva com a cidade ou com a imagem que tenho da cidade. E acho que isso cresce com o tempo, esse sentimento em relação ao lugar onde se nasceu. Talvez com o tempo a cidade ‘bote a gente comovido como o diabo’. Seja como for, Cuiabá sempre vai ter um espaço privilegiado na minha cabeça. Aliás, estou há alguns meses escrevendo um poema-livro em torno de Cuiabá.

D.C.: Como é que Cuiabá e Mato Grosso influenciam sua produção literária?

M.G.B.: A presença de Cuiabá na minha escrita cresce com o tempo: nos primeiros anos se percebia pouco ou nada de Cuiabá nos meus poemas; nos últimos dois anos vem ganhando um espaço cada vez maior no que escrevo. Alguns meses atrás publiquei no próprio Diário de Cuiabá um poema chamado “Cuiabá/Chapada dos Guimarães”, que para a minha alegria foi comentado pela grande Lucinda Nogueira Persona. E, como comentei na resposta anterior, venho trabalhando há alguns meses em um poema-livro em torno de Cuiabá.

Acho que morar em outro lugar acaba criando uma relação estranha e interessante entre qualquer pessoa e sua cidade natal. Sempre há alguma coisa a se desenterrar.

D.C.: Depois dos estudos na USP, que caminhos você pretende seguir?

M.G.B.: Acabei de passar pela qualificação de minha dissertação de mestrado, que é sobre tradução de poesia alemã. Quero terminar o mestrado, já fazer o doutorado e depois começar a dar aulas em alguma universidade. Não me vejo trabalhando com outra coisa. Mas nunca se sabe, não é mesmo? Já no campo da poesia, pretendo simplesmente continuar a escrever. O bom da arte é que nunca se alcança aquilo que se quer: a busca é contínua, não há ponto final. Arte é movimento. E isso me enche de alegria.

“O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto – Caio César Esteves de Souza – 8.9.2017

*por Caio César Esteves de Souza
(Fonte: https://exerciciosdecriticaliteraria.wordpress.com/2017/09/08/o-nulo-poetaema-de-matheus-gumenin-barreto/ )

8 de setembro de 2017

Como disse lá na página Sobre, fiz este blog para escrever alguns exercícios de crítica literária despretensiosos sobre textos que eu tenha lido e achado interessantes por algum motivo. Para dar um pontapé inicial, nada melhor do que discutir um texto recente, ainda fresco e, até onde sei, não visitado por outros críticos literários. Escolhi para isso o poema “O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto.

O poema foi publicado no livro de reestreia do Matheus, chamado A Máquina de Carregar Nadas, lançado pela 7Letras há mais ou menos um mês. Esse poema abre a terceira parte do livro, intitulada “Poesia outra vez em pânico & retomada”, e não poderia estar em seção mais apropriada. Já na abertura dessa terceira parte, encontramos três epígrafes bastante interessantes, das quais nos interessa principalmente a tirada de Onde Vais, Drama-Poesia, de Maria Gabriela Llansol: “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”

Como o texto é curto, vou copiá-lo aqui embaixo, antes que eu estrague a experiência de um primeiro contato com ele:

 

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
………………………….[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

 

Tenho a impressão de que toda a força desse poema vem do uso da repetição em diversos níveis de leitura. Quando o li pela primeira vez, tive que admitir a minha ignorância já no primeiro – e segundo, e terceiro e, com outra cara, quarto – verso, e parei a leitura para, com alguma vergonha, ir ao Google descobrir quem eram hutus e tutsis. Quando descobri que estavam ligados ao genocídio que ocorreu em Ruanda em 1994, voltei ao texto seguro de que, agora, entenderia as suas referências. O que eu não sabia é que, ao buscar essas referências, tinha me tornado refém do poema.

Do sexto até o penúltimo verso, o poema discute o nosso desconhecimento dessas etnias, que implica o esquecimento de um genocídio que matou cerca de 800 mil pessoas em apenas 100 dias (quase seis pessoas mortas por minuto), e levou cerca de 2 milhões de pessoas a se refugiarem no país vizinho, Zaire – hoje, República Democrática do Congo.

Em uma breve pesquisa, encontrei imagens assustadoras da barbárie que tomou as ruas de Ruanda após o atentado que matou o presidente Juvenal Habyarimana (da etnia hutu, majoritária no país). Sem que uma investigação adequada fosse feita, um grupo político tutsi foi acusado de ter planejado o ataque que derrubou o avião presidencial, e milícias hutus saíram às ruas exterminando qualquer pessoa que pertencesse à etnia tutsi, inclusive idosos e crianças. Muitas vezes, as armas utilizadas eram facões domésticos, que ainda hoje marcam a fisionomia dos sobreviventes […].

A história é horrível, e quanto mais lemos sobre, mais impactante ela se mostra. Diante dessa barbárie, o poeta (criado pelo poema) se abisma com o “pecado” de não saber o que são tutsis, nem quem são hutus, ou onde fica Ruanda. Boa parte do poema se constrói a partir de uma série de versos truncados que repetem expressões bastante típicas de pesquisas online: “tutsis o que são/ o que são tutsis / quem são / hutus”. No entanto, essas perguntas nunca se fecham. É como se antes que a pergunta pudesse ser finalizada – isso é, antes que a interrogação pudesse ser posta – o poeta voltasse atrás, horrorizado com a possibilidade de estar perguntando aquilo, e buscasse se corrigir, emendar o esquecimento. No entanto, esse apagamento não pode ser desfeito e o texto se torna caótico, criando um tipo de fluxo de (in)consciência. A voz que enuncia esse poema tenta se ressignificar constantemente, mas diante do absurdo ético de seu esquecimento, não consegue achar saída que não seja repetir diversas vezes o vazio que busca calar.

Quando o Matheus escolhe utilizar essas perguntas bastante típicas de buscas no Google e em sites afins, ele causa (conscientemente ou não) um efeito muito interessante no seu leitor. É muito provável que, como eu, outros leitores tenham recorrido à internet para descobrir quem são hutus e tutsis. Quando retornamos ao poema, vemos um dedo em riste que nos acusa: “pecado de não saber o que são tutsis”. Essa mão que nos acusa também acusa a si própria e, repetindo as mesmas perguntas que o leitor fez momentos atrás, faz com que a sua fala desesperada e desordenada se transforme em nossas próprias palavras. Já detemos a resposta para as perguntas, mas ainda assim nos vemos condenados a repeti-las junto com o enunciador, sem que possamos fugir desse transe verbal.

A perversidade do poema vem no último verso: ” – a maioria a golpes de facão.”. Pra mim, esse verso tem dois efeitos, em dois planos de leitura. Inicialmente, ele me força a voltar ao poema e relê-lo. Aí, percebo que o facão perpassa todo o texto. Alguns versos são particularmente explícitos, como “pelo pecado pelo pec- / ado”, e “peca/do” (neste último caso, a barra está presente já no verso). No primeiro desses versos, a quebra da sílaba tônica de “pecado” cria um som desagradável que leva o verso a terminar em uma oclusiva surda “pec-“, e que nos força não apenas a ouvir, mas a pronunciar o som de um golpe de facão que põe fim à vida, desmembrando um verso em dois, como se separasse uma cabeça de seu corpo, fazendo-a rolar para o verso seguinte. No segundo, a cisão é menos acentuada, já que não altera a constituição das sílabas, mas nos obriga a fazer uma breve pausa no meio da palavra, e nos força a perceber com desconforto a barbárie que é retratada pelo texto.

Em geral, a repetição nos traz a sensação de acúmulo de sentidos. No caso deste poema, ela nos mostra a falta, o fragmento e a morte. As perguntas, ao se repetirem, não se completam e se encontram sempre em pedaços, esquartejadas. O extermínio, o pecado, Ruanda, hutus e tutsis são produzidos nesse poema em fragmentos. Em outras palavras, o poema reproduz o genocídio sobre o qual fala em sua própria forma. E faz isso de maneira aguda e perversa, que só permite que o leitor perceba o artifício no último verso, quando já foi por ele envolvido.

Em outro plano de leitura, o último verso força o leitor a se identificar ainda mais com o enunciador, ao deixar claro ao fim do verso que o poeta-pecador – que não sabe “o que são tutsis”, e que se mostra em um caos/transe verbal tentando fugir do esquecimento -, na verdade, conhecia de antemão as respostas a todas as perguntas que propôs durante o texto. Da mesma forma, o leitor sabia dessas respostas quando se deixou levar por esse transe verbal que refazia seus passos. O último verso mostra que esse caos é artifício, assim como todo o desespero que ele produz. Nesse verso, a pontuação volta ao normal, a frase se completa, o genocídio é reproduzido com sucesso na forma de todo o poema e o leitor, que se identificou com essa voz durante mais de vinte versos, se olha no espelho e se percebe com sangue nas mãos.

Dá pra falar muitas outras coisas sobre o poema, mas acho que já abusei da paciência dos dois ou três que tiveram ânimo para me ler até aqui. Esse é um dos melhores poemas que li recentemente, e faz parte de um dos melhores (se não o melhor) livros de poesia que li nos últimos anos. Matheus Guménin Barreto é um daqueles poucos que sabem que poesia não é espinha e, portanto, não brota espontaneamente. Ela é construída, com muito trabalho, leituras, releituras e paciência. Por isso ele escreve tão bem. Sem dúvida, é um dos grandes da nossa geração. O seu poema representa de forma muitíssimo eficiente o que estava exposto na epígrafe de Llansol “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”. Esse poema é um daqueles que apresentam a poesia como agressão e violação do leitor. Nos envolve apenas para, ao fim, nos largar em meio a uma barbárie produzida por nossas próprias mãos. Não há espaço para redenção. Não há perdão para o sangue já derramado. Em suma, é grande poesia.

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