“O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto – Caio César Esteves de Souza – 8.9.2017

*por Caio César Esteves de Souza
(Fonte: https://exerciciosdecriticaliteraria.wordpress.com/2017/09/08/o-nulo-poetaema-de-matheus-gumenin-barreto/ )

8 de setembro de 2017

Como disse lá na página Sobre, fiz este blog para escrever alguns exercícios de crítica literária despretensiosos sobre textos que eu tenha lido e achado interessantes por algum motivo. Para dar um pontapé inicial, nada melhor do que discutir um texto recente, ainda fresco e, até onde sei, não visitado por outros críticos literários. Escolhi para isso o poema “O nulo poeta/ema”, de Matheus Guménin Barreto.

O poema foi publicado no livro de reestreia do Matheus, chamado A Máquina de Carregar Nadas, lançado pela 7Letras há mais ou menos um mês. Esse poema abre a terceira parte do livro, intitulada “Poesia outra vez em pânico & retomada”, e não poderia estar em seção mais apropriada. Já na abertura dessa terceira parte, encontramos três epígrafes bastante interessantes, das quais nos interessa principalmente a tirada de Onde Vais, Drama-Poesia, de Maria Gabriela Llansol: “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”

Como o texto é curto, vou copiá-lo aqui embaixo, antes que eu estrague a experiência de um primeiro contato com ele:

 

O NULO POETA/EMA

quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
………………………….[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda

– a maioria a golpes de facão.

 

Tenho a impressão de que toda a força desse poema vem do uso da repetição em diversos níveis de leitura. Quando o li pela primeira vez, tive que admitir a minha ignorância já no primeiro – e segundo, e terceiro e, com outra cara, quarto – verso, e parei a leitura para, com alguma vergonha, ir ao Google descobrir quem eram hutus e tutsis. Quando descobri que estavam ligados ao genocídio que ocorreu em Ruanda em 1994, voltei ao texto seguro de que, agora, entenderia as suas referências. O que eu não sabia é que, ao buscar essas referências, tinha me tornado refém do poema.

Do sexto até o penúltimo verso, o poema discute o nosso desconhecimento dessas etnias, que implica o esquecimento de um genocídio que matou cerca de 800 mil pessoas em apenas 100 dias (quase seis pessoas mortas por minuto), e levou cerca de 2 milhões de pessoas a se refugiarem no país vizinho, Zaire – hoje, República Democrática do Congo.

Em uma breve pesquisa, encontrei imagens assustadoras da barbárie que tomou as ruas de Ruanda após o atentado que matou o presidente Juvenal Habyarimana (da etnia hutu, majoritária no país). Sem que uma investigação adequada fosse feita, um grupo político tutsi foi acusado de ter planejado o ataque que derrubou o avião presidencial, e milícias hutus saíram às ruas exterminando qualquer pessoa que pertencesse à etnia tutsi, inclusive idosos e crianças. Muitas vezes, as armas utilizadas eram facões domésticos, que ainda hoje marcam a fisionomia dos sobreviventes […].

A história é horrível, e quanto mais lemos sobre, mais impactante ela se mostra. Diante dessa barbárie, o poeta (criado pelo poema) se abisma com o “pecado” de não saber o que são tutsis, nem quem são hutus, ou onde fica Ruanda. Boa parte do poema se constrói a partir de uma série de versos truncados que repetem expressões bastante típicas de pesquisas online: “tutsis o que são/ o que são tutsis / quem são / hutus”. No entanto, essas perguntas nunca se fecham. É como se antes que a pergunta pudesse ser finalizada – isso é, antes que a interrogação pudesse ser posta – o poeta voltasse atrás, horrorizado com a possibilidade de estar perguntando aquilo, e buscasse se corrigir, emendar o esquecimento. No entanto, esse apagamento não pode ser desfeito e o texto se torna caótico, criando um tipo de fluxo de (in)consciência. A voz que enuncia esse poema tenta se ressignificar constantemente, mas diante do absurdo ético de seu esquecimento, não consegue achar saída que não seja repetir diversas vezes o vazio que busca calar.

Quando o Matheus escolhe utilizar essas perguntas bastante típicas de buscas no Google e em sites afins, ele causa (conscientemente ou não) um efeito muito interessante no seu leitor. É muito provável que, como eu, outros leitores tenham recorrido à internet para descobrir quem são hutus e tutsis. Quando retornamos ao poema, vemos um dedo em riste que nos acusa: “pecado de não saber o que são tutsis”. Essa mão que nos acusa também acusa a si própria e, repetindo as mesmas perguntas que o leitor fez momentos atrás, faz com que a sua fala desesperada e desordenada se transforme em nossas próprias palavras. Já detemos a resposta para as perguntas, mas ainda assim nos vemos condenados a repeti-las junto com o enunciador, sem que possamos fugir desse transe verbal.

A perversidade do poema vem no último verso: ” – a maioria a golpes de facão.”. Pra mim, esse verso tem dois efeitos, em dois planos de leitura. Inicialmente, ele me força a voltar ao poema e relê-lo. Aí, percebo que o facão perpassa todo o texto. Alguns versos são particularmente explícitos, como “pelo pecado pelo pec- / ado”, e “peca/do” (neste último caso, a barra está presente já no verso). No primeiro desses versos, a quebra da sílaba tônica de “pecado” cria um som desagradável que leva o verso a terminar em uma oclusiva surda “pec-“, e que nos força não apenas a ouvir, mas a pronunciar o som de um golpe de facão que põe fim à vida, desmembrando um verso em dois, como se separasse uma cabeça de seu corpo, fazendo-a rolar para o verso seguinte. No segundo, a cisão é menos acentuada, já que não altera a constituição das sílabas, mas nos obriga a fazer uma breve pausa no meio da palavra, e nos força a perceber com desconforto a barbárie que é retratada pelo texto.

Em geral, a repetição nos traz a sensação de acúmulo de sentidos. No caso deste poema, ela nos mostra a falta, o fragmento e a morte. As perguntas, ao se repetirem, não se completam e se encontram sempre em pedaços, esquartejadas. O extermínio, o pecado, Ruanda, hutus e tutsis são produzidos nesse poema em fragmentos. Em outras palavras, o poema reproduz o genocídio sobre o qual fala em sua própria forma. E faz isso de maneira aguda e perversa, que só permite que o leitor perceba o artifício no último verso, quando já foi por ele envolvido.

Em outro plano de leitura, o último verso força o leitor a se identificar ainda mais com o enunciador, ao deixar claro ao fim do verso que o poeta-pecador – que não sabe “o que são tutsis”, e que se mostra em um caos/transe verbal tentando fugir do esquecimento -, na verdade, conhecia de antemão as respostas a todas as perguntas que propôs durante o texto. Da mesma forma, o leitor sabia dessas respostas quando se deixou levar por esse transe verbal que refazia seus passos. O último verso mostra que esse caos é artifício, assim como todo o desespero que ele produz. Nesse verso, a pontuação volta ao normal, a frase se completa, o genocídio é reproduzido com sucesso na forma de todo o poema e o leitor, que se identificou com essa voz durante mais de vinte versos, se olha no espelho e se percebe com sangue nas mãos.

Dá pra falar muitas outras coisas sobre o poema, mas acho que já abusei da paciência dos dois ou três que tiveram ânimo para me ler até aqui. Esse é um dos melhores poemas que li recentemente, e faz parte de um dos melhores (se não o melhor) livros de poesia que li nos últimos anos. Matheus Guménin Barreto é um daqueles poucos que sabem que poesia não é espinha e, portanto, não brota espontaneamente. Ela é construída, com muito trabalho, leituras, releituras e paciência. Por isso ele escreve tão bem. Sem dúvida, é um dos grandes da nossa geração. O seu poema representa de forma muitíssimo eficiente o que estava exposto na epígrafe de Llansol “onde as palavras não chegam, ou chegam apenas para violar.”. Esse poema é um daqueles que apresentam a poesia como agressão e violação do leitor. Nos envolve apenas para, ao fim, nos largar em meio a uma barbárie produzida por nossas próprias mãos. Não há espaço para redenção. Não há perdão para o sangue já derramado. Em suma, é grande poesia.

Quem quiser deixar um feedback (positivou ou não) nos comentários, sinta-se à vontade! Além disso, podem me mandar mensagem na página Contato ou, se preferir, pelo Facebook ou Twitter. Pretendo postar textos deste tipo periodicamente, então esse retorno é importante para saber se este formato de texto funciona em um blog deste tipo. Até mais!

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