“Um livro que se despe diante do leitor” – Entrevista ao jornal A Gazeta – 28.1.2018

*por Ana Flávia Corrêa
(Fonte: http://www.gazetadigital.com.br/edicao/materia/numero/9458 )

28 de janeiro de 2018

Escreve, reescreve, corta, apaga, costura, emenda. É assim o processo de criação do poeta cuiabano Matheus Guménin Barreto, 25. Atualmente ele mora em São Paulo e faz mestrado na Universidade de São Paulo (USP), na sua área de formação – letras. No ano passado, ele lançou seu quarto livro, o “A Máquina de Carregar Nadas”, que considera ser o primeiro de sua carreira.

“Eu escrevi três livros antes, mas eu não acho que eles sejam bons. Para mim é como se eles fossem exercícios. Olhando os outros livros eu não vejo nada vergonhoso, nada de horrível, mas também não vejo nada de mais”, explica.

Em entrevista ao Zine, ele contou sobre sua trajetória na literatura, suas vivências e experiências em São Paulo. Confira os melhores trechos:

Quando você começou a escrever?

Matheus: Primeiro eu comecei a ler muito. Com uns oito anos eu já lia bastante essas séries de aventura, de suspense. Eu basicamente lia a biblioteca da minha escola inteira. Escrever eu comecei um pouco depois, como brincadeira. Eu escrevia uma história e meus amigos continuavam e a gente ficava montando em conjunto. Cada um fazia um personagem, um parágrafo e no fim formávamos uma história. Hoje eu vejo que eles [meus textos] eram muito ruins, mas foi um exercício para eu pegar o gosto pela escrita. Aos 14 eu comecei a escrever poemas.

Seus pais sabiam e te apoiavam?

Matheus: Eu era muito fechado nesse sentido, então eu não falava pros meus pais. Meus poemas eu mostrava para a minha professora do ensino médio de literatura, e ela foi incentivando. Ela foi o primeiro adulto pra quem eu mostrei os poemas. Meus pais foram ficar sabendo só quando eu me mudei pra São Paulo, já com 18, e aí teve um concurso nacional que eu ganhei. Foi quando eu falei pra eles.

Como funciona o seu processo de escrever?

Matheus: Eu nunca escolho escrever, nunca decidi escrever um poema. É uma coisa mental, é como estar pensando em algum assunto aleatório e de repente uma coisa se encaixa. Eu nunca tenho o poema todo na cabeça, aparece o primeiro verso e eu o escrevo no caderno, a partir desse primeiro verso os outros vão aparecendo.

E como você se organiza?

Matheus: Eu tenho um trabalho muito importante de ‘depois de escrever’. Costumo dizer que eu sou ao mesmo tempo meu pior inimigo e meu melhor amigo. Eu sempre acho que tudo está ruim ou que pode ficar melhor. Organizo, corto, rescrevo muito e às vezes só 20% do que eu escrevo é o que eu realmente guardo, o resto eu jogo fora mesmo, sem pena. Essa parte que vem depois da primeira escrita é tão importante quanto ela. Eu não tenho como só escrever e colocar lá no papel e ‘está pronto’.

Sobre o que você costuma escrever?

Matheus: A poesia é como um instrumento pra mim. Um instrumento de pesquisa sobre mim, sobre como eu vejo as pessoas ao meu redor, como eu vejo o funcionamento dessas outras pessoas, das relações humanas, enfim. Tudo é passível de ser trabalhado, não só a partir da poesia, mas de qualquer forma artística. É como se ela fosse uma ferramenta pra escavar algo e a partir disso eu consigo chegar a algo que está ali debaixo, escondido.

Quais são suas referências?

Matheus: É engraçado que logo que eu leio um livro aquilo fica alguns dias em mim, e se eu vou escrever o poema logo depois desse leitura ela aparece de alguma forma, só depois ela se dilui, vai sumindo – mas alguma coisa fica e todas as leituras vão se acumulando. Eu não gosto de escrever logo depois de ler um livro muito grande ou de ler uma obra completa, porque isso acaba aparecendo até demais. Eu sempre dou um tempinho, espero.

Como foi o processo de criação do A Máquina de Carregar Nadas?

Matheus: Eu fiquei um bom tempo escrevendo, 5 anos, e depois fiquei com ele guardado por seis meses sem nem olhar. Seis meses depois eu cortei os poemas pela metade, arrumei e cortei mais um pouco. A versão original deve ter apenas ¼ da primeira versão – ou menos. Esse é o meu jeito de trabalhar.

Qual a estrutura do livro?

Matheus: O livro tem três partes, e é basicamente um livro que se desfaz. A primeira parte tem poemas bem mais tradicionais, com metro fixo, rimas alternadas, e isso casa com o tema. São coisas muito coladas ao Eu. É algo muito fechado, e acho que isso se mostra na forma. Na segunda parte começam as quebras. Os versos vão se libertando, as rimas desaparecem e começam a entrar outros temas – os espaços, os lugares, já não só o Eu. Na terceira parte é que tudo se desfaz e entra uma poesia mais participante, mas entra como se isso desestruturasse totalmente o Eu: os poemas ficam quebrados, aparece uma prosa poética, poemas perdem título, viram um verso só. O livro vai se despindo [e desestruturando] quando o Eu entra em contato com o Outro.

Por que o nome A Máquina de Carregar Nadas?

Matheus: É um título que dizem ser meio ambíguo – e eu gosto disso. Algumas pessoas acham que seja positivo, outras que seja negativo. A “máquina” poderia representar a poesia, o ser humano, as possibilidades são muitas. E se alguém pensa ‘Como assim ela não carrega nada?’: não é nada, são “nadas”. Para os outros é nada, mas para o Eu são nadas. São nossa experiência, nossa vivência, o nosso afeto – o que somos, enfim, o que carregamos e somos.

Você acredita que Cuiabá seja um território favorável para os artistas?

Matheus: Tem muita coisa acontecendo aqui em Cuiabá. Eu não sei se é porque agora eu estou mais velho e prestando mais atenção ou se realmente tem alguma coisa diferente acontecendo. Tem muito escritor, muito fotógrafo, muito pintor, muito estilista, todo mundo aparecendo e é uma galera da nossa idade. Em Cuiabá há uma ascensão do movimento artístico no geral, em tudo.

Três poemas de Matheus Guménin Barreto – Literatura & Fechadura – 22.1.2018

(Fonte: http://www.literaturaefechadura.com.br/2018/01/22/tres-poemas-de-matheus-gumenin-barreto/ )

 

CANTO DE DISSOLUÇÃO

Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.

Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.

Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.

Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.

Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.

*

[SEM TÍTULO]

é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?

é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer desse país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?

*

[SEM TÍTULO]

as partículas todas
agrupadas ou prestes a
sempr-
e na dança comum do ir sendo
e a
multiplicação
pródiga de tudo o que foi,
é, será ou pode vir a ser
e o cair de tudo isso do colo abarrotado do tempo

fulminam alguém num apartamento de classe média alta no dividido Brasil de PECs 55

 

Matheus Guménin Barreto (Cuiabá, 1992) é um poeta e tradutor brasileiro. Pós-graduando da Universidade de São Paulo (USP), traduz a poesia de Ingeborg Bachmann e a de Brecht. É editor do site cultural mato-grossense Ruído Manifesto e tem poemas publicados em diversas revistas no Brasil e em Portugal. Lançou em 2017 o livro de poemas A máquina de carregar nadas (Editora 7Letras).