(Fonte: http://www.incomunidade.com/v68/art_bl.php?art=192 )
POESIA
Ou fruto apenas entre os dentes
prestes prestes prestes a romper-se.
*
POEMA AMARELO
a faca tem de ser eloquente
e falar sabendo o porquê
e falar o discurso de chaga
ferida
na carne que a faca lê
*
EQUAÇÕES MATEMÁTICAS
1)
na curva, na nuance encontrei Deus
no limpo da linha reta o perdi
2)
quando se escuta o marulho da noite
e as coisas ganham contorno insuspeito
a geometria do silêncio aflora
e a vida vale
3)
o silêncio anterior
ao construto da fala no lábio
4)
não diz
se sabe que o dito não condiz
com o que se queria dito
e,
dito,
é outro dito no ouvido que o apascenta.
*
POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO
“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu
cabelo”
– Ana Paula Tavares, Manual para amantes
desesperados, 2007.
a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.
b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer
pois
a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras
fechadas de pôr do sol
c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios
até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr
flor
que anoitece
– e o eclipse do corpo meu
é violento
*
O NULO POETA/EMA
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda
– a maioria a golpes de facão.
*
MANHÃ
a –
Notícias da manhã
informam que o tempo, de
fato, passou,
e que a noite foi só uma
de fato.
b –
O dorso arrebentado do sol,
surge o dia.
c –
A manhã ruge
nos dentes das árvores.
*
NESTE TEMPO
Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.
*
MISSA DE 7º DIA
A cama que criam absoluta
porque carregou ali quem morria
e, morto, tomou posse
[do que
[a cama é
– essa cama foi batida
[ao sol,
[refrescada, posta
[ao craquelado
[da luz
[de algum quintal
e perdeu seu morto
como quem perde um tostão.
*
PARA O POEMA DESTA PÁGINA
“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou.”
para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.
*
PENSAR QUE DORMEM TODOS
pensar pensar
pensar que todos deitam por baixo
da sombra do sono,
que dormem todos pensar que
o assassino o belo o tímido o
sagaz o corrupto o
miserável o tranquilo
dormem dormem deitam por baixo da
rede do sono
e dormem
pensar
nos seus rostos à meia-luz
entre os panos e o tear de silêncios
da noite
pensar
nessa estranha escura sem-querer
irmandade
entre os ——————–
pensar nos seus rostos
por baixo da sombra do sono
o peito respirando
a boca meio aberta
à meia-luz
pensar que dormem todos
irmãos