Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg (Alemanha). Encontram-se textos seus no Brasil, na Espanha e em Portugal (Revista Cult, Escamandro, plaquete “Vozes, Versos”, Palavra Comum, Enfermaria 6, Revista Escriva [PUC-RS], Revista Magma [USP], Revista Opiniães [USP], A Bacana, Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. Publicou em periódicos ou em livros traduções de Bertolt Brecht, Erich Kästner, Ingeborg Bachmann, Johannes Bobrowski, Nelly Sachs, Paul Celan, Peter Waterhouse e outros.
Os 5 poemas abaixo são do livro A máquina de carregar nadas.
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O ÚLTIMO POEMA OU RIO LETE
Para a amiga Juliana Pasquarelli Perez
“Um dia em que se possa não saber.” (Sophia de Mello Breyner Andresen, “Intervalo II”, 1950)
A cabeça no limbo do tempo.
Descansar já sem rosto e sem nome
e, deitado no córrego insone,
esquecer-se do bicho, do homem
e, com o tempo, esquecer-se do tempo.
*
O NULO POETA/EMA
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda
– a maioria a golpes de facão.
*
POEMA DO AMADO PARA SEU AMADO
“Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo” (Ana Paula Tavares, Manual para amantes desesperados, 2007)
a)
os dentes
teus amanhecem quando me veem
e compreendo
o inerte ofício das pedras
– plenas completas alegres.
b)
a voz amanhece na tua boca
ilumina: da garganta
ruminando o que não fora dito,
inaudito, e o que se ficou por dizer
pois
a voz amanhece na tua boca
e o contorno do sol posto
fica pregado
fica pregado
nas pálpebras
fechadas de pôr do sol
c)
e tua boca anoitece
quando o silêncio pousa e faz ninho nos teus lábios
até que
então nasce outra vez
o sol
da tua garganta áspera
raia outra vez, já à espera paciente
da hora de se pôr
flor
que anoitece
– e o eclipse do corpo meu
é violento
*
PRIMEIRO
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.
A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes
sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria
e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.
*
CANTO DE DISSOLUÇÃO
Sepultadas no tempo
deitam-se as coisas todas,
que já nem coisas são,
mas memória de coisas.
Sepultados no tempo
afundam-se os rostos
todos, ou quase todos,
e as datas, risos, gostos.
Sepultadas no tempo
jazem as nossas vidas,
num tempo em que não são
nem gozo nem ferida.
Sepultados, enfim,
no tempo, todos nós.
Onde não há nem feito,
nem pessoa, nem voz.